John Reed (1887 - 1920)
O
século XX foi o da tentativa de materialização das grandes utopias modernas,
confrontando opiniões e levando a duas grandes guerras de caráter mundial.
Já
em 1917, a revolução bolchevique passou a embalar o sonho da maioria dos
marxistas, que tiveram a chance de acompanhar a implantação da primeira
experiência mais sólida de um estado socialista – pelo menos, de acordo com os
conceitos leninistas. Também, a Itália viveu a sua utopia, a de um estado
fascista, que influenciaria a experiência nazista de Hitler e falanges em todo
o mundo.
Na
América do Norte, a burguesia liberal aprofundou a sociedade de mercado,
levando-a a um plano inimaginável, com novos produtos, novas organizações para
o trabalho (divulgado por Hollywood, o modo de vida americano passou a ser
invejado por muitos). Na China chocaram-se, numa grande guerra civil, as forças
e ideias de Mao Zedong e do Kuumitang. Mesmo os japoneses não ficaram imunes a
esse movimento global, e tentaram aprofundar seu grande sonho: o de um grande
Japão, estendendo-se por toda a Ásia.
No
intervalo das duas grandes guerras, viveu-se um período de grandes
efervescências que se materializou numa arte revolucionaria e em militantes
inquietos e sonhadores. Revoluções explodiam em todo planeta. No Brasil, as
ideias tenentistas e da Semana de 22 asfaltavam as estradas que levariam à
revolução de 30.
John
Reed foi um desses revolucionários que procurou viver plenamente o clima do
século XX; daqueles que tinha como projeto de vida a realização de suas
utopias. Trata-se de um tipo de personagem heroico, que poderíamos encontrar
nos romances de Érico Verissimo (como o personagem Vasco, por exemplo), que são
capazes de abandonar tudo e participar de uma guerra civil em um país distante,
(como a Espanha…), para defender seus ideais.
Americano
de Portland, filho de uma família de posses, Reed formou-se em Harvard, um
centro do pensamento conservador norte-americano. Mas, para loucura de seus
mestres, não seguiu o caminho tradicional dos filhos da burguesia. Viveu a sua
curta e intensa vida no bairro boêmio de Village, em New York, nas primeiras
décadas do século XX, rodeado de intelectuais, artistas e revolucionários,
destacando-se como um dos mais brilhantes jornalistas do inicio daquele século.
E como um intelectual que colocou como objetivo de vida engajar-se nos
movimentos sociais, dando voz aos oprimidos pelo capital.
Amigo
de Emma Goldman, importante ativista anarquista daqueles tempos, e de líderes
sindicais do movimento socialista, sempre postou-se ao lado dos mais fracos,
colocando seu talento literário a serviço das causas operárias, fazendo a
cobertura jornalística das greves e confrontos contra os patrões.
Jornalista
por escolha, e defensor de ideias libertárias, viu na revolução mexicana de
1912 um grande acontecimento popular. Reportou-a com o risco da própria vida,
chegando, inclusive, a fazer uma histórica entrevista com Pancho Villa, um dos
líderes da revolução camponesa, de quem se tornou amigo.
Por
suas ideias e atitudes contestatórias, Reed foi perseguido e discriminado na
grande imprensa norte-americana. Por isso mesmo, tornou-se de grande valor Reds – filme
que, produzido em Hollywood, tenta retratar alguns momentos de sua vida.
Talvez,
pelo caráter romântico e aventureiro que esta adquiriu e pelo grande romance
que o jornalista viveu com feminista Louise Bryant, sua companheira até a
morte, essa produção centra-se mais no romance das suas vidas em comum,
colocando em segundo plano uma extensa e intensa obra de militante de esquerda,
no país mais importante do capitalismo.
A
produção é dirigida por Warren Beatty, que faz também o papel de Jonh Reed. Tem
a participação de Diane Hall (também Diane Keaton), no papel de Louise Bryant;
Jack Nicholson interpreta Eugene O’Neill e Edward Herrmann representa Max
Eastman Traz à tona, com intenso realismo, os primórdios da modernização
capitalista. Mostrando uma face das utopias do movimento operário que se perdeu
na sociedade de consumo contemporânea. Vale a pena refletir sobre ela, além do
filme em questão.
John
Reed escreveu, entre outros livros um dos mais empolgantes trabalhos sobre a
revolução soviética: Os dez dias que abalaram o mundo. É uma obra-prima; descreve com
um intenso realismo o evento social mais espetacular do século XX – a grande
revolução capitaneada pelos bolcheviques e pelo seu líder, Lênin.
Antes
de dedicar-se à Rússia, o autor acompanhava a I Guerra Mundial na Europa,
fazendo artigos para a imprensa americana. Ao saber da deposição do czar
Nicolau, decidiu cobrir aquele confuso movimento político. Anteviu a grande
importância histórica que ele representava.
A
revolução bolchevique teria um espectador estrangeiro à sua altura: Reed não se
contentou em fazer uma cobertura superficial. Tomando um lado da história, foi
capaz de traduzir aqueles intrincados acontecimentos, que teriam importância
sem precedentes na história moderna da humanidade.
Em
certa parte do livro, o autor, ao se referir aos eventos revolucionários que
assistiu, fala com propriedade: “há dias que valem por cem anos”. Significa que
a história não se movimenta de maneira contínua e linear. Em certos momentos,
algumas atitudes podem alterar o curso dos acontecimentos e nos projetar para
um futuro antes impossível.
De
um momento para o outro, forças sociais poderosas tinham se posto em movimento
na velha Rússia czarista. Chocaram-se com uma realidade até então considerada
imutável, colocando abaixo o velho regime e trazendo à tona os personagens mais
excluídos – considerados como escória, corja social.
Traziam
a utopia de uma nova forma de viver e de se relacionar, sem a interferência do
capital e da exploração do homem pelo homem. Reed percebeu que, naquela hora,
Lênin e seus companheiros bolcheviques, eram a força política que mais se
identificava com esses anseios.
Em
certo momento, quando assistia a um evento histórico – o II Congresso Pan-russo
dos Sovietes dos Deputados Operários e Soldados, às vésperas da invasão do
Palácio de Inverno, e início da deposição do governo de Kerensky, Reed atenta
para a exclamação feita por uma das recepcionistas da reunião, revelando que em
poucos meses mudara a correlação das forças políticas na Rússia e os
bolcheviques,antes minoria, passavam a comandar o processo revolucionário:
“A
moça encarregada do serviço, membro do grupo de Plekhânov, sorria
desdenhosamente.
–
Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso [ela se referia ao
Congresso de meses antes, em que os mencheviques e cadetes tinham a maioria] –
disse-me ela: — Vejam que fisionomias abrutalhadas e que expressões de
ignorância! Que gente inculta!
E
não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os que se
achavam nas maiores profundidades é que estavam vindo à superfície”.
A
acuidade política de Reed, adquirida nas lutas operárias de que participou nos
Estados Unidos, permitiu-lhe perceber para onde se inclinava a maré
revolucionária e entender a postura intransigente e determinada dos
bolcheviques, que, confiando nos desejos da classe trabalhadora, foram capazes
de derrubar o governo provisório de Kerensky e avançar, sem perder o rumo, para
uma nova etapa da revolução russa: a implantação de um governo soviético,
dirigido pelo partido que tinha Lênin como líder.
Assim
se refere Reed às características desse líder singular, quando o viu chegar ao
Congresso dos Sovietes:
“Uma
silhueta baixa. Cabeça redonda e calva, mergulhada entre os ombros. Olhos
pequenos, nariz rombudo, boca larga e generosa. Mandíbula pesada. Estava
completamente barbeado. Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele
momento em diante iria ser eterna, já começava a despontar novamente. O casaco
estava poído; as calças eram compridas demais. Sua aparência física não
indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido e venerado
como poucos chefes em toda a história. Um estranho chefe popular. Chefe só pelo
poder do espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em
destaque, sem a menor particularidade interessante, mas possuindo, em alto
grau, a capacidade de explicar ideias profundas em termos simples e de analisar
concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual, assim era
Lênin.”
Lênin
caracteriza-se, sem dúvidas, por genialidade na compreensão da sociedade russa
e das características do mundo em que viveu. Foi capaz de traçar uma estratégia
admirável para a tomada do poder político.
Seus
livros foram todos escritos no fragor da luta política. Cada um deles insere-se
numa realidade peculiar da conjuntura da Rússia pré-revolucionária e
revolucionária. Não são devaneios intelectuais, pois estão presos, no geral, ao
desejo de uma prática imediata. Sua obstinação e rigidez teórica o fizeram
transformar um pequeno partido, nascido da cisão da social-democracia russa, na
vanguarda revolucionária de um evento que movimentou milhões de pessoas.
Reed
teve a sorte de estar ali, naquele momento, podendo conviver com uma figura tão
importante. Pode, também, ouvir os discursos dos líderes dos diversos partidos,
que fizeram parte daqueles dias decisivos. Entrevistou pessoas das mais
diversas correntes, tanto da esquerda como da direita. Sentiu a profundidade da
esperança que moveu milhões de pessoas na busca da construção de um outro tipo
de sociedade, sem a exploração do homem pelo homem. E cumpriu um papel: seu livro,
fruto da sua participação naqueles eventos, tornou-se no maior documento sobre
a revolução russa.
Seu
valor literário é indiscutível. Lênin e sua esposa Krupskaia fizeram questão de
prefaciar sua primeira edição em solo russo. Também, em nome do Partido
Comunista, em 1957, escreveu-se um posfácio a uma edição russa. Seu propósito
claro é afirmar conceitos sobre a luta que se sucedeu após a morte de Lênin –
quando Stálin expurgou líderes bolcheviques que Reed cita no seu livro, tais
como Trostsky, Zinoviev e Kamenev.
Após
retornar à Rússia, depois de passar um período nos Estados Unidos, Reed
faleceu, recebendo honras de estado, como herói do povo soviético. Foi
enterrado na Praça Vermelha, ao lado do túmulo de Lênin. Uma justa homenagem
pelo amor que tinha pela revolução russa.
Hoje,
a utopia de Jonh Reed, o estado soviético, não existe mais. Foi vencida pela
utopia da sociedade do livre mercado: aquilo que Guy Debod chamou de
“Espetáculo Integrado”.
Os
bolcheviques não conseguiram construir a sociedade almejada pela utopia
socialista. Golpeados pelo fetiche da mercadoria, transformaram-se em
administradores de um capitalismo de estado. Foram incapazes de perceber que os
sujeitos sociais construídos pelo desenvolvimento capitalista (a “classe
burguesa” ou a “classe proletária”) não podem ser agentes da emancipação, pois
não deixam de ser sujeitos capitalistas.
Não
procuraram avançar para além da sociedade da mercadoria, de superar o trabalho
abstrato e o valor, de abolir a cruel intermediação que impede o homem de
atingir a sua plenitude como ser integrado ao universo. Entraram, então, numa
competição vazia com seus concorrentes ocidentais, cujo objetivo era
estabelecer que modelo social poderia fazer o melhor bem de consumo, as
melhores armas de destruição em massa, agredindo de forma sem precedentes o
meio ambiente.
Através
de um estado capturado pela burocracia, comandaram, com a estrutura da III
Internacional, um processo de lutas operárias em todo o mundo, que só serviu
para avalizar o capitalismo, dando-lhe uma face social, adquirida nas
negociações com os sindicatos. Num mundo com diversos matizes de capitalismos
socializantes, a classe operária vai, então, ao paraíso, onde os seres humanos
são meros consumidores, transformando-se em reféns das crises cíclicas do
sistema.
A
atitude inquieta e revolucionária de Jonh Reed expressa o sentido de liberdade
inerente a todos os seres humanos. Ele não morreu com o desenvolvimento do
estado soviético. Esteve e estará presente no espírito das barricadas da
revolução de outubro, como na Comuna de Paris, ou em tantos eventos em que o
povo foi às ruas lutar por suas utopias.
Arlindenor
Pedro. in. Outras Palavras