Era
uma cidade pequena e pacata. Vivia-se ali uma vida sem sobressaltos, mas houve
uma época em que pessoas, cada vez mais numerosas, começaram a ser atacadas por
surtos de insônia e medo. Deitavam-se à hora habitual mas não conseguiam adormecer.
Enquanto maridos ou esposas ressonavam em paz, ao lado, esposas ou maridos
retorciam-se sobre o colchão, ora de um lado, ora do outro, fitando as telhas
do teto ou os traços à meia-luz da janela fechada, por onde se infiltrava um
pouco da luz da rua. O sino próximo batia uma hora. Depois duas. Depois três. A
madrugada avançava e as pessoas sofriam, de olhos abertos e com a mente em
redemoinho. De nada adiantava a água com açúcar, o chá quente de camomila; de
nada adiantava a garrafa de vinho sorvida sem prazer, o meio litro de uísque
engolido como quem quer ganhar uma aposta. O sono não vinha.
Vinha
a insônia, e com ela o medo da solidão, o medo da noite, o medo inexplicável
daquela cidade que durante a noite parecia morta. Médicos ficavam sem ter o que
receitar, esgotados todos os recursos de sua farmacopéia artesanal. Mulheres
com olheiras despejavam lágrimas; homens embrutecidos pela incapacidade de
dormir praguejavam, brigavam no trabalho, perdiam o emprego.
Alguns
fizeram uma descoberta. Era melhor fingir que estava tudo normal e, madrugada
afora, escancarar as janelas da rua, acender todas as luzes, agir como se fosse
a horinha do anoitecer. Os outros insones viam aquela única casa
iluminada e saíam para a rua, levavam para a calçada suas cadeiras, sentavam-se
ali e ficavam olhando aquela sala luminosa e colorida onde alguém lia um jornal
ou regava flores.
A
administração pública resolveu intervir; já eram muitas centenas os insones. E
foi modificado o horário de funcionamento de alguns edifícios públicos: a
cadeia, o hospital, o manicômio. Logo estes se revelaram ímãs poderosos para
atrair o deserdados do sono. Naqueles prédios, sempre havia uma ala funcionando
a todo vapor durante a madrugada, com luzes acesas, janelas escancaradas para a
platéia de notívagos, por fim apaziguados, sentados no meio-fio, em banquinhos,
em cadeiras de plástico de botequim, cadeiras de balanço. Trazidas de casa.
Quem passasse na rua veria as pequenas multidões dos perseguidos da noite
contemplando as enfermeiras que limpavam um doente, o interrogatório brutal de
um ladrão de cavalos, ou as rotinas insensatas dos loucos do hospício, talvez
os que aderiram com mais entusiasmo àquela reviravolta no mundo dos relógios;
dormiam de dia e passavam a noite representando, conforme lhes dava na telha, a
novelazinha de suas vidas para a platéia dos órfãos do sono.
*Braulio
Tavares in. Mundo Fantasmo
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Moonlit Night on the Crimea, Gurzuf, 1839.
Oil on canvas, 101 x 136
cm.
Ivan K. Aivazovskii,
1817-1900.