sábado, 17 de setembro de 2011

Literatura como missão*



Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, foi um trabalho pioneiro no Brasil. Publicado ainda na década de 1980 como fruto da tese de doutoramento do seu autor, a obra fundou amplos campos de pesquisa  resultando naquilo que se convencionou chamar de história social da cultura.

Captar as mudanças, as tensões sociais e a criação cultural na virada do século XIX para o século XX, a partir da interface entre o literário e o histórico, foi a missão de que se incumbiu Sevcenko nesta obra. O Rio de Janeiro atuou como cenário principal dos embates e das transformações urbanas, políticas e mentais daquele momento. Sua entrada na Belle Époque serviu de mote a poetas, cronistas e escritores que vivenciaram estas tensões sociais. Para o autor, a literatura moderna “aparece como ângulo estratégico notável, para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada estrutura social.” Nesse sentido, a literatura pensada através da história, além de significar um produto artístico, surge como possibilidade de compreensão das mudanças e dos mecanismos de permanência de uma dada época.

Euclides da Cunha e Lima Barreto foram os personagens-escritores de que se serviu o historiador para adentrar no universo convulso da nascente República. Ambos viveram e sentiram, como contemporâneos e conterrâneos, as "mudanças" que se processaram no interior das camadas sociais brasileiras. Desse torvelinho cultural poucos se salvaram. Euclides da Cunha e Lima Barreto sobreviveram graças ao seu engajamento sociopolítico, à sua consciência humanitária e a clara visão das mudanças em curso naquele instante da história do país, ambos se encontravam na dianteira intelectual do seu tempo.

Nicolau Sevcenko procura apresentá-los em suas sintonias e antinomias, em sua sensibilidade ao falar das tensões da época em que viveram e dos nexos entre a criação artística e a própria história. Sociedade e Literatura figuram nas obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto como interfaces da dimensão histórica. Apropriando-se disso, o autor analisa o conjunto das obras destes escritores na tentativa de perscrutar o cotidiano e a vida social carioca no limiar do século XX. Metodologicamente, a literatura para Sevcenko não aparece como uma ferramenta inerte, mas sim como um ritual complexo capaz de construir, modelar e revelar simbolicamente o mundo.

Literatura como Missão, é uma obra que apresenta a primeira República pelo avesso, pois procura revelar as trincas, as rachaduras e estrias dos principais eventos tão propalados pela historiografia brasileira, não a partir dos fatos centrais, mas da maneira como foram sentidos e representados pela intelectualidade carioca do período.  Enfim, ainda hoje Literatura como Missão é uma leitura obrigatória aqueles que pretendem conhecer e discutir o surgimento de um Brasil que se dizia Republicano, laico, anti-escravocrata e justo.



*Josenias S. Silva in. Fronteiras Literárias

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Fragmento: 


As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir. A rapidez e profundidade da transfiguração que devassou a sociedade inculcou na produção artística uma inquietação diretamente voltada para os processos de mudança, perplexa com a sua intensidade inédita, presa de seus desmandos e ansiosa de assumir a sua condução. Fruto das transformações, dedicada a refletir sobre elas e exprimi-las de todo modo, essa literatura pretendia ainda mais alcançar o seu controle, fosse racional, artística ou politicamente. Poucas vezes a criação literária esteve tão presa à própria epiderme da história tout court. Era em grande parte uma literatura encampada por homens de ação, com predisposição para a liderança e gerência político-social: engenheiros, militares, médicos, políticos, diplomatas, publicistas. Nesse meio e sob essa atmosfera, quem quer que se dispusesse a servir às letras era compelido à atuação cívica já pela dupla imposição de tirocínio e forma.

Nicolau Sevcenko in. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. Ed. Companhia das Letras, 2003.



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