domingo, 4 de dezembro de 2011

Germaine*

Por Henry Miller




Foi numa tarde de domingo, muito parecida com esta, que encontrei Germaine pela primeira vez. Estava andando pelo Boulevard Beaumarchais, enriquecido por uns cem francos que minha mulher remetera da América freneticamente por meio de cabograma. Havia um toque de primavera no ar, uma primavera venenosa e maléfica que parecia irromper das bocas de esgoto. Noite após noite, eu voltava a esse trecho, atraído por certas ruas leprosas que só revelavam seu sinistro esplendor quando a luz do sol se esvaía e as prostitutas começavam a ocupar seus postos.

A Rue Pasteur Wagner é uma que lembro particularmente, na esquina da Rue Amelot, que se esconde por trás de um bulevar, como sonolento lagarto. Aqui, no gargalo da garrafa, por assim dizer, havia sempre um bando de abutres que grasnavam e batiam as asas sujas, que estendiam as garras afiadas e nos empurravam para uma porta. Demônios joviais e vorazes que nem davam tempo de abotoar as calças depois de acabar. Levavam-nos para um quartinho ao lado da rua, geralmente um quarto sem janela, e, sentando-se na beirada da cama, com a saia erguida, faziam-nos uma rápida inspeção, cuspiam-nos no membro colocavam-no no lugar. Enquanto um se lavava, outro estava em pé na porta, e ela, segurando a vítima pela mão, observava indiferentemente o que dava os toques finais na toalete.

Germaine era diferente. Em sua aparência nada me dizia isso. Nada a distinguia das outras prostitutas que se reuniam à tarde e à noitinha no Café de L'Eléphant. Como disse, era um dia de primavera e os poucos francos que minha mulher conseguira juntar para mandar-me pelo cabograma tiniam-me no bolso. Eu tinha uma vaga premonição de que não chegaria à Bastille sem ter sido arrastado por uma daquelas aves de rapina. Caminhando ao longo do bulevar, eu a notara convergindo em minha direção, com aquele curioso ar vadio da prostituta, os saltos gastos dos sapatos, as jóias baratas e a aparência macilenta do seu tipo, que o ruge só consegue acentuar.

 Não foi difícil chegar a acordo com ela. Sentamo-nos no fundo do pequeno tabac chamado L'Eléphant e conversamos rapidamente. Poucos minutos depois, estávamos em um quarto de cinco francos na Rue Amelot, as cortinas fechadas e as cobertas puxadas para o fundo da cama. Germaine não fazia as coisas com pressa. Sentou-se no bidê, ensaboando-se e falando-me amavelmente sobre isto e aquilo; havia gostado dos knickerbockers que eu vestia. Très chic! pensava ela. Haviam sido antigamente, mas eu já lhes gastara os fundilhos. Felizmente, o paletó me cobria a bunda. Quando se levantou para enxugar-se, ainda falando amavelmente comigo, deixou cair de repente a toalha e, avançando devagar em minha direção, começou a esfregar a vagina afetuosamente, segurando-a com as duas mãos, dando-lhe palmadinhas, acariciando-a, acariciando-a.

Em sua eloqüência naquele momento e na maneira como jogava aquela roseira sob meu nariz, havia algo que permanece inesquecível; falava dela como se fosse um objeto estranho, um objeto que adquirira por alto preço, um objeto cujo valor aumentara com o tempo e que agora prezava acima de tudo no mundo. Suas palavras impregnavam-na de uma fragrância peculiar; não era mais apenas seu órgão privado, mas um tesouro, um tesouro mágico e potente, uma coisa dada por Deus - nada perdendo por negociá-la dia após dia em troca de algumas moedas de prata. Quando se jogou na cama, com as pernas bem abertas, pôs as mãos em concha sobre ela e deu-lhe mais algumas palmadinhas, murmurando todo o tempo, com aquela sua voz rouca e dissonante, que era boa, bonita, um tesouro, um pequeno tesouro. E era boa, aquela sua vaginazinha! Naquela tarde de domingo, com seu hálito venenoso de primavera no ar, tudo voltou de novo a correr bem. Quando saímos do hotel, olhei-a outra vez sob a luz clara do dia e vi claramente que puta ela era - os dentes de ouro, o gerânio no chapéu, os saltos gastos etc., etc. Nem mesmo por haver conseguido arrancar-me um jantar, cigarros e táxi, exerceu efeito perturbador sobre mim. Na verdade eu a encorajei. Gostei tanto dela que, depois do jantar, voltamos ao hotel e fizemos outra vez. "No amor", desta vez. E de novo aquela sua coisa grande e cabeluda mostrou florescência e magia. Ela começava a ter uma existência independente - para mim também. Havia Germaine e havia aquela sua roseira. Eu gostava das duas separadamente e gostava delas juntas.

Como disse, Germaine era diferente. Mais tarde, quando descobriu as verdadeiras circunstâncias em que eu vivia, tratou-me com nobreza - pagou-me bebidas, deu-me crédito, empenhou minhas coisas, apresentou-me a seus amigos e assim por diante. Chegou mesmo a pedir desculpas por não me emprestar dinheiro, o que compreendi muito bem depois que me apontaram seu maquereau. Noite após noite, eu descia o Boulevard Beaumarchais até o pequeno tabac onde todas elas se reuniam e esperava que ela chegasse e me desse alguns minutos de seu precioso tempo.
     
Quando, algum tempo depois, vim a escrever sobre Claude, não era em Claude que eu pensava, mas em Germaine... "Todos os homens com que ela esteve e agora você, precisamente você, e barcas passando, mastros e cascos, toda a maldita corrente da vida fluindo através de você, através dela, através de todos os caras antes de você e depois de você, as flores e os pássaros e o sol fluindo, e a fragrância disso sufocando-o, aniquilando-o." Isso foi para Germaine! Claude não era a mesma coisa, embora eu a admirasse tremendamente - embora tivesse mesmo pensado durante algum tempo que a amava. Claude tinha uma alma e uma consciência; tinha também refinamento, o que é ruim - numa puta. Claude sempre dava impressão de tristeza; deixava a impressão, sem querer, naturalmente, de que você era apenas mais um acrescentado à corrente que o destino criara para destruí-la. Sem querer, digo eu, porque Claude seria a última pessoa no mundo a criar conscientemente tal imagem no espírito da gente. Era excessivamente delicada, excessivamente sensível para isso. No fundo, Claude era apenas uma boa moça francesa, de criação e inteligência medianas, a quem a vida enganara de uma maneira qualquer; havia nela algo que não era bastante forte para resistir ao choque da experiência cotidiana. Para ela eram destinadas aquelas terríveis palavras de Louis-Philippe: "E chega uma noite em que tudo está acabado, em que tantas mandíbulas se fecharam sobre nós que não temos mais força para resistir e nossa carne pende sobre nossos corpos, como se mastigada por todas as bocas". Germaine, por outro lado, era uma puta desde o berço; estava plenamente satisfeita com seu papel, gostava realmente dele, exceto quando o estômago lhe doía ou seus sapatos acabavam, pequenas coisas superficiais sem importância, nada que lhe devorasse a alma, nada que criasse tormento. Ennui! Era o que já sentira de pior. Havia dias, sem dúvida, em que se enchia, como dizemos mas nada mais do que isso! Na maior parte do tempo gostava daquilo - ou dava a ilusão de gostar. Fazia diferença, naturalmente, com quem ela ia - ou vinha. Mas o principal era um homem. Um homem! Isso é o que ela queria. Um homem tendo entre as pernas alguma coisa que pudesse deleitá-la, que pudesse fazê-la contorcer-se em êxtase, que a fizesse agarrar aquela sua vulva cabeluda com ambas as mãos e esfregá-la alegremente, jactanciosamente, orgulhosamente, com um senso de conexão, um senso de vida. Esse era o único lugar onde ela experimentava alguma vida - ali embaixo, onde segurava com ambas as mãos.

Germaine era uma puta de alto a baixo, até mesmo em seu bom coração, seu coração de puta que não era realmente um bom coração, mas um coração preguiçoso, indiferentemente e flácido, capaz de comover-se por um momento, um coração sem referência a qualquer ponto fixo dentro, um grande e flácido coração de puta que podia destacar-se por um momento de seu verdadeiro centro. Entretanto, por mais vil e circunscrito que fosse aquele mundo que ela criara para si própria, funcionava nele soberbamente. E isso por si só é uma coisa tônica. Quando, depois que já nos havíamos tornado bem conhecidos, suas companheiras me censuravam, dizendo que eu estava amando Germaine (situação quase inconcebível para elas), eu dizia: "Claro! Claro que a amo! E, ainda mais, vou ser fiel a ela!" Mentira, naturalmente, pois eu não poderia pensar em amar Germaine mais do que poderia pensar em amar uma aranha; e, se era fiel, não era a Germaine, mas àquela coisa cabeluda que ela tinha entre as pernas. Sempre que olhava para outra mulher pensava imediatamente em Germaine, naquela touceira ardente que ela deixara em minha mente e que parecia imperecível. Causava-me prazer sentar no terrasse do pequeno tabac e observá-la em seu ofício, observá-la recorrer com os outros aos mesmos trejeitos, aos mesmos truques, que usara comigo. "Ela está no seu trabalho!" era como me sentia em relação àquilo e era com aprovação que lhe acompanhava as transações. Posteriormente, quando me liguei a Claude e a via noite após noite sentada em seu lugar de costume, o traseirinho redondo roliçamente acomodado no assento de pelúcia, eu sentia uma espécie de inexpressível revolta contra ela; uma puta, pensava eu, não tinha o direito de sentar-se ali como uma dama, esperando timidamente que alguém se aproximasse, e o tempo todo a sorver abstemiamente seu chocolat. Germaine era uma pessoa ativa. Não esperava que alguém chegasse até ela - saía e agarrava-o. Lembro-me tão bem dos furos de suas meias e dos sapatos tortos e rasgados! Lembro-me de como ficava em pé no bar e, com cega e corajosa determinação, lançava uma bebida forte no estômago e marchava para fora de novo. Uma pessoa ativa! Talvez não fosse agradável cheirar-lhe o hálito de bebida, aquele hálito composto de café fraco, conhaque, apéritifs, Pernods e todas as outras coisas que ela engolia nos intervalos, tanto para aquecer-se como para reunir força e coragem, mas o fogo delas penetrava-a, descia-lhe ardendo entre as pernas, onde as mulheres devem arder, e lá estabelecia aquele circuito que nos faz sentir de novo a terra sob os pés. Quando ficava lá deitada com as pernas abertas e gemendo, ainda que gemesse daquele jeito para todo mundo, era bom, era uma demonstração apropriada de sentimento. Não fitava o forro com ar vazio, nem contava os percevejos no papel da parede; conservava a mente em seu negócio, falava sobre as coisas que um homem deseja ouvir quando está trepando em uma mulher. Ao passo que Claude - bem, com Claude sempre havia certa delicadeza, mesmo quando estava com alguém embaixo das cobertas. E sua delicadeza me ofendia. Quem quer uma puta delicada? Claude chegava a pedir que você virasse o rosto quando ela se agachava sobre o bidê. Tudo errado! Um homem, quando ardendo de paixão, quer ver coisas; quer ver tudo, até mesmo com elas mijam. E, embora seja muito bonito saber que uma mulher tem uma mente, literatura vinda do cadáver frio de uma puta é a última coisa que se pode servir na cama. Germaine tinha a idéia certa: era ignorante e sadia, punha o coração e a alma em seu trabalho... puta de alto a baixo - e essa era a sua virtude.


Henry Miller, Trópico de Câncer, 1987, pp. 45-50.

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*Sexo e lirismo numa das melhores passagens do livro, simplesmente soberbo!!!.... Leia também: Henry Miller, aquele cão dos diabos, relato de como conheci esse autor.
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