quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O beijo de Lamourette*

The Death of Marat, Jacques-Louis David (1748-1825)

Todos têm fantasias. As minhas são devaneios históricos, uma maneira de brincar de Rip van Winkle ao contrário. Eu me afundo em minha poltrona, nas mãos um livro pesado que vai ficando cada vez mais pesado, e me entrego a um cochilo. Então acordo em Paris, no auge da Revolução, despertado por um beijo. Às vezes é o beijo da morte, às vezes o beijo do amor, um pequeno amor, amor perdido entre as paixões do passado: le baiser de Lamourette.

O primeiro tipo de beijo sai de um pesadelo. Foullon de Doué, funcionário do Ministério da Guerra, foi capturado pela multidão. A Bastilha acabou de cair, e pelas ruas correm rumores de conspirações para matar o povo comum de fome e sufocar sua insurreição. Diz-se que Foullon está envolvido num dos complôs. Os sublevados o derrubam, arrastam-no até um poste perto do Hôtel de Ville, e enforcam-no no cadafalso improvisado. Ele balança por um momento no ar, até que a corda se rompe. Ele é erguido de novo. De novo ela se rompe. Na terceira tentativa, finalmente, a vida lhe é arrancada. Uma pesada mão agarra o corpo, corta a cabeça, abre os maxilares à força e enche a boca de palha. ―"Que comam feno", teria dito Foullon, ecoando o famoso ―"Comam boloatribuído à rainha. Terá ele realmente dito isso? Não importa. Sua cabeça agora anuncia a mensagem, desfilada pelas ruas na ponta de uma lança.

Logo depois, uma outra multidão, tão enfurecida quanto a primeira, captura o genro de Foullon, Bertier de Sauvigny, o intendente de Paris, enquanto ele percorre os arredores da cidade numa carruagem aberta. Levam-no para a Place de Grève, o grande espaço aberto em frente ao Hôtel de Ville, gravado na imaginação de todos como um local de luta e morte, pois é lá que os trabalhadores se reúnem para ser contratados e fazer greve (―faire la grève), e é lá que Sanson, o carrasco público, admirado e temido como um maitre des hautes oeuvres, exerce sua arte, arrancando os membros das articulações, esmagando ossos, quebrando pescoços no patíbulo oficial do Antigo Regime, um teatro de violência que será abolido quando a Revolução ordenar a morte pela guilhotina. Mas a máquina inventada pelo dr. Guillotin, que agora se senta na Assembléia Nacional avaliando constituições e outros projetos que tais, só começará a funcionar em 21 de agosto de 1792. Em 23 de julho de 1789, a justiça está nas mãos da multidão.

Os amotinados arrastam Bertier em sua carruagem para a execução e o esquartejamento na praça da morte. Ao seguirem gritando pelas ruas, eles encontram o primeiro grupo de sublevados, que desfilam com a cabeça de Foullon. As duas multidões se fundem numa única onda de violência, levando Bertier em sua crista. Ele olha horrorizado através das lanças e vê a cabeça de seu sogro, aproximando-se cada vez mais, até que a empurram para o seu rosto: ―"Beije papai! Beije papai!", canta a multidão.


Robert Darnton in. “O beijo de Lamourette”. Ed. Companhia das Letras, 2010. pp. 9-10.

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