domingo, 15 de janeiro de 2012

Programa de auditório e a fé*



Por Affonso Romano de Sant´Anna





Qual a relação entre um programa de auditório e um culto religioso?

Existe um movimento em todos os credos para transformar os cultos em grandes happenings. Não basta, como antigamente, cantar hinos tristes e solenes, acender velas e orar contritamente,  é preciso animação, festa, gritaria para espantar o demônio e agregar os crentes.

A pastora Ana Lúcia, lá em Belford Roxo, bota prá quebrar. Num ritmo que mistura funk e gospel  vai cantando para o endemoniado: agora quebra, quebra, quebra, tá pegando fogo, tá pegando fogo. E o auditório vibra, canta, chora e dança enquanto os ex-pagodeiros  que agora formam o conjunto Os Gideões, mandam ver.

Assim como as igrejas protestantes e católicas invadiram a televisão com seus cultos, a pastora Ana Lúcia, até então desconhecida, invadiu  o  youtube e seu vídeo já foi visto por quase 400 mil pessoas. É a era da comunicação. Quem não se comunica não se salva (nem ganha dinheiro).

Riobaldo, o personagem de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa dizia que se Deus resolvesse aparecer no sertão, que aparecesse armado.  Hoje se pode  dizer: se Cristo quisesse fazer o Sermão da Montanha, que  tratasse de trazer o DVD e CD para vender. Esta é que seria a verdadeira multiplicação de pães e peixes.

Quando eu dava aulas e estudava a questão da carnavalização em nossa cultura, ou seja, os rituais e festas, deparei-me com um teólogo protestante que  dizia que tínhamos que pensar que Cristo era um Arlequim e não um Pierrô. Era uma visão vital e alegre da fé em oposição à morbidez tradicional.

Agora, no entanto, criou-se algo bem mais radical. Exemplo disto  é o que eu chamaria de comédia evangélica. Um jornal cita três comediantes que se apresentam, não em teatros e na televisão, mas em igrejas.  Reparem, não é também o que antigamente se chamava de pastor conferencista - aquele pregador excepcional que vinha por uns dias para reativar  a fé amortecida das fiéis. Era sempre um  orador excepcional, Agora, não. Pode ser qualquer um que saiba manejar o bom humor. Um deles, por exemplo, é o radialista Robinho Silva, que antes já fazia o axé  católico e tem um cartaz de propaganda que diz: Evangelização com stand up e muito humor. Ou seja, segue a receita desse tipo de comédia americana: stand up-  que está virando moda no Brasil: um sujeito  sozinho no palco fazendo os outros rirem.

A formula não é nova, e aplicada à religião é apenas invertida. Os cultos tradicionais faziam as pessoas chorarem e desesperarem de suas vidas, a vida era mesmo uma cruz  e um suplício. Ou seja, onde havia morte celebra-se a vida, onde havia imobilidade, o movimento, onde havia murmúrio e reza, agora a dança e a gritaria. Mas o principio é o mesmo: uma pessoa conduzindo a massa, secundado às vezes por um côro, como acontecia nas tragédias gregas.

Como dizem os portugueses, isto tem piada, quer dizer, tem sua graça, pois o dentista Fabio Borges, um desses comediantes da fé, conta por exemplo, que uma fiel rezava assim a Ave Maria: Ave Maria cheia de graça, bendita suas avós entre as mulheres. Isto acontece. Me lembrei que quando eu era criança costumava (seriamente) cantar assim uma das linhas do Hino Nacional: verás que um filisteu não foge à luta.

Isto tudo, está preso àquilo que Gille Dorfles, nos  anos 60 profetizou como a sociedade do espetáculo.  Com efeito, a religião sempre lançou mão de rituais espetaculares, como forma de agregar e emocionar. Mas a modernidade, rompendo fronteiras e transgredindo sempre, está nos presenteando com algo intrigante: a vida virou um grande shopping, um grande programa de auditório onde os perdidos tentam se salvar dançando com muita fé.

(*) Estado de Minas/.15.01.2012




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