sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Graciliano com medo*



Por José Castello


Leio, um tanto perplexo, quase tonto, na correspondência de Graciliano Ramos: "Sou, talvez, no mundo o indivíduo que menos confiança tem em si mesmo. Lembras-te da folha seca da canção? 'Vou para onde o vento me leva...' Apenas nunca me julguei folha de rosa, ou de louro. Serei, quando muito, uma desgraçada folha de mandioca, como é razoável". Releio para confirmar o que li. A sinceridade de Graciliano me atordoa, mas me fortalece.

A confissão é feita no ano de 1921, em carta ao amigo Mota Lima Filho. Graciliano está com 29 anos de idade. Já não é uma criança: seis anos depois será eleito prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas. Só 12 anos depois, já quarentão, publicará seu primeiro livro, "Caetés", de 1933. No ano seguinte, publica "São Bernardo" e mais dois anos depois, "Angústia". Sua obra-prima, "Vida secas", de 1938, prova definitiva de sua autoconfiança - o que não exclui o medo, mas o emoldura - , foi publicada aos 46 anos. 

Pois na mesma carta a Mota Lima Filho, escrita aos 29 anos de idade, ainda antes do primeiro livro, Graciliano diz ainda: "Muito me diverti com a extravagante idéia que tiveste de pedir-me alguma coisa para ser publicada aí. Escrever, hoje, com a minha idade? Que pensas de mim?" A certeza com que, antes dos trinta anos, ele afirma sua falta de vocação é um exemplo gritante do descompasso absoluto entre tempo e escrita. E, no entanto, logo depois - desmentindo a si mesmo, traindo a si mesmo - ele começaria a escrever sua grande obra. Tempo retorcido, tempo mais potente.
O sábio Graciliano desprezava não só o cerco do tempo, mas também os espartilhos asfixiantes da gramática. Em carta dos anos 1930 a sua segunda mulher, Heloísa, tenta convencê-la a escrever, ela também, um romance. Aconselha: "Escreva às escondidas, não é preciso ninguém saber que você se dedica a ocupações prejudiciais". E mais à frente: "Faça uma tentativa à noite, quando o pessoal estiver dormindo". Quanto ao suposto despreparo da mulher para a escrita literária, evoca a figura de George Sand, que "começou a escrever sem gramática". Acrescenta: "Nossos escritores atuais, Zé Lins (do Rego) e Jorge (Amado) à frente, ignoram isso completamente". 

Um conselho, entre eles, creio, se destaca. É direto, simples, brutal: "Não imite ninguém, faça coisa sua". Um escritor não deve nada a ninguém; se deve, ou pensa que deve, não escreve. Graciliano sabe que, com suas idéias, causa espanto à mulher, mas acredita sinceramente que a vocação literária vem de regiões distintas do bem escrever, da retórica afiada, do "bom preparo". Vem de zonas escuras e até desprezíveis. Desmentindo o que pensou de si mesmo aos 29 anos, agora inclui a insegurança e o despreparo entre as condições fundamentais da escrita. 

Sabia Graciliano que, sem uma boa dose de dúvída e de insegurança nada se chega a escrever. A segurança é uma trava. A certeza, uma coleira. Sem um desprezo pela "boa escrita" também não se consegue escrever. Fala, todo o tempo, do medo, que entrava não só sua mulher, mas a ele mesmo. Não se trata de "não ter medo", mas de incluir o medo no que se faz. Sem medo, ninguém atravessa uma avenida - pois não olhará para os lados, e correrá o risco de ser atropelado. Sem medo, já me disse uma voz muito sábia, ninguém escreve. O medo não é uma obstáculo à escrita, mas uma de suas mais importantes condições.






Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...