sábado, 28 de janeiro de 2012

Lord Jim*



Por Roberto Pompeu de Toledo



Eta mundo cruel. Sucede às vezes que uma decisão tomada em um segundo, não mais que um miserável segundo, ou menos ainda — um átimo de segundo —, determina o rumo de toda uma existência. Foi o que ocorreu com Jim, simplesmente Jim como ele se apresentava, com vergonha de ser reconhecido caso declinasse o nome por inteiro. Jim é o marinheiro protagonista de Lord Jim, famoso romance de Joseph Conrad, publicado pela primeira vez em capítulos entre 1899 e 1900. A história ocorre nos dias de glória do Império Britânico, quando o sol nunca se punha sobre os domínios da rainha Vitória e avançar pelos mares, em busca de aventura, liberdade, prazeres e heroísmo, era o desiderato de muitos jovens. Assim era para Jim. Seduzia-o em especial, entre os citados, o item “heroísmo”.

E lá foi ele, escolhendo como local preferencial de suas errâncias marítimas os confins do Sudeste Asiático. Um dia, emprega-se num dos portos da região como imediato do Patna, vapor já castigado pelo uso, fretado para levar uma turba de muçulmanos ao hajj, a peregrinação anual a Meca. No meio da viagem, o navio começa a fazer água. Oitocentas pessoas amontoam-se a bordo. Só a tripulação se dá conta do que ocorre. O capitão, um holandês, e três outros tripulantes põem-se sorrateiramente à tarefa de soltar os parafusos e as correntes de um dos poucos botes salva-vidas disponíveis. Jim os observa de longe. Já adivinha o que os move e encara-os com escárnio. Está difícil desamarrar o bote, e os colegas pedem sua ajuda. Ele se nega a atendê-los. Enfim o bote se solta e os quatro apressam-se em acomodar-se nele. “Pula, pula”, gritam, lá de baixo. Jim não quer pular. E os outros? E os oitocentos passageiros? A solidariedade, a compaixão, a coragem, o dever e a honra, valores que prezava acima de tudo, impedem-no de fazê-lo. “Pula, pula, que o navio afundará em pouco tempo.” Dá-se então aquele segundo fatídico, ou átimo de segundo, em que é agora ou nunca. Ele pula.

Jim foi condenado por abandono do navio e perde a licença para navegar. Daí em diante viverá de pequenos expedientes nos portos da região. Para acrescentar ao opróbrio o ridículo, fica sabendo que os passageiros do Patna não morreram; um navio francês chegou a tempo de resgatá-los. Ao relatar sua desventura, Jim dirá que logo após o pulo se deu conta da enormidade do que tinha feito. “O navio parecia alto como um muro; pendia sobre o bote como um penhasco. Eu desejava a morte. Impossível voltar para trás. Era como se eu tivesse saltado num poço, num buraco sem fundo.”A imagem era perfeita. Um buraco sem fundo abrira-se em sua existência. Sempre que, num porto, era reconhecido, mudava para outro. Passou o resto da vida a purgar sua vergonha.
A navegação, atividade antiga, presta-se a desencavar palavras antigas, meio em desuso na linguagem corrente de hoje, como vergonha e honra. Joseph Conrad (1857-1924), ele próprio um marinheiro antes de dedicar-se à literatura, tinha-as em alta conta. Em seus livros, o entrecho aventuresco e as paragens exóticas são temperados por imperativos morais que pairam como o fio da espada sobre os personagens. Outro livro em que isso ocorre é Coração das Trevas, que serviu de base para o filme Apocalypse Now. Em Lord Jim a desgraça do personagem decorre do desrespeito à norma de que o capitão (e o que vale para o capitão vale também para o imediato, o segundo na linha de comando) não pode abandonar o navio. A norma resume antiga sabedoria, a de que o exercício da máxima autoridade tem como contrapartida a máxima responsabilidade.
O capitão italiano do Costa Concordia, Francesco Schettino, foi defrontado com seu segundo fatídico — e saltou no bote. Na sua hora da verdade, precipitou-se no mesmo poço de Jim, um buraco sem fim. Em outras atividades, a vergonha de um passo em falso pode ser escondida do mundo exterior e, bem trabalhada, ser esquecida até pelo próprio envergonhado. Na política, com exceção do Japão, onde os envergonhados praticam o haraquiri, a regra é a vergonha substituir-se desde o primeiro momento, e com sucesso, pela esperteza e falácia. Já o ato desonroso do capitão que abandona o navio expõe-se com evidência incontornável. Ao contrário de Jim, não resta a Schettino nem o recurso de refugiar-se no anonimato em portos da Malásia ou da Indonésia, apresentando-se apenas como Francesco. Se não fosse descoberto pela imprensa, não faltariam câmera do celular, Google ou Facebook a rastreá-lo. Seu desafio será viver, simplesmente viver, daqui para a frente. Talvez, nessas circunstâncias, a prisão, coitado, lhe seja um conforto.


Fonte: Revista Veja,  25 de janeiro de 2012, p. 134.

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