quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A ameaça da canção de ninar*



Por Betty Milan



Quem dorme aceita se retirar da realidade e ficar indefeso. Essa retirada, sem a qual nós não vivemos, pode ser angustiante e deve ser facilitada. Por isso, espera-se  de uma canção de ninar que seja apaziguadora.

No entanto, ainda hoje, no Brasil, ouve-se a canção aterradora com a qual fui criada. Tive o desprazer de constatar isso ligando a Rede Globo e vendo um ator que cantava; enquanto segurava um bebê nos braços; “Dorme, neném, que a Cuca vem pegar. Papai foi pra roça, mamãe foi passear”. O rosto do ator era bonito e do bebê, comovente - dois anjos. Mas, sem ter consciência do que fazia, o ator ameaçava a criança. Dizia-lhe que o pai e a mãe estavam ausentes, e, caso não dormisse, a Cuca a levaria.

Popularmente, a Cuca é uma velha feia parecida com um jacaré. Segundo o Aurélio, um bicho-papão ou papa-gente. E, de acordo com Monteiro Lobato, uma bruxa com unhas compridas como as de um gavião.

Como explicar a vigência de uma canção de ninar tão assustadora, se não pelo sadismo dos adultos em relação ás crianças? Um sadismo cujas consequências podem ser nefastas.

A educação começa no berço, com as primeiras palavras, que tanto podem abrir quanto fechar os nossos caminhos. Isso significa que o educador — o pai, a mãe ou outra pessoa – precisa atentar para o que diz.

Em vez de fazer menção à Cuca, porque não escolher, por exemplo, uma canção de ninar como as dos Beatles, Good Night? “Hora de dizer boa-noite. Boa noite durma bem. O sol já apagou sua luz. Boa noite durma bem”. Uma canção que associa o sono à desaparição do sol,  fazendo dele um fenômeno natural.

Ninguém é obrigado a procriar.  A obrigação está fora de moda. Mas quem tiver filho precisa se ocupar dele durante a infância com devoção e inteligência. Contrariando os hábitos, se preciso for.

A vida não é fácil e, para evitar dificuldades futuras, a prevenção é sempre melhor do que o tratamento. Nós só nos esquecemos disso porque não somos educados para ser felizes, e sim para repetir o que os outros fizeram sem questionar.


Fonte: Revista Veja - 24/08/ 2011, p.120.


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