terça-feira, 1 de novembro de 2011

Fina Estampa e a luta de classes no Brasil*



Por JOSENIAS SILVA



- Eu estava certa! Olhem só para essa gente: é a tropa de choque da falta de classe e do mau gosto... Os frutos da miséria, da ignorância, desse cruzamento de raças que deu no que deu: em um povinho tacanho, sem verniz, sem noção de onde é seu lugar!

[...]

- Vou te mostrar como é! Toma, sua infeliz, toma!


Não sou daqueles que se deixa fisgar por novelas e coisas do tipo, mas como professor e pessoa minimamente informada gosto de saber o que se anda discutindo por aí. Ontem (31), por exemplo, tive a curiosidade de assistir uma cena da super-comentada novela global Fina Estampa. Assisti interessadamente aquela cena em que as personagens Griselda (Lilia Cabral) e Tereza Cristina (Christiane Torloni) batem boca e se estapeiam por causa da compra de uma mansão no luxuoso condomínio Marapendi Dreams.

A suburbana Griselda da Silva Pereira, que foi catapultada socialmente após ganhar um prêmio de R$ 50 milhões, é a principal antagonista da "puro sangue" Tereza Cristina Siqueira Velmont, socialite bem situada que agora, depois de humilhar Griselda por sua ninguendade durante vários capítulos, se sente ameaçada pela figura da “emergente” milionária. Fato é que as personagens são um verdadeiro espelho da luta de classes no Brasil contemporâneo. Griselda e Tereza Cristina são provas de que existe ódio de classe no Brasil e de que nós somos sabedores disso.

É inegável que vivemos em uma sociedade de classes, que nossa história, como disse Karl Marx no seu Manifesto Comunista, é uma história de luta de classes. Essa luta de classes, como a das personagens de Fina Estampa, desnuda as tensões de uma sociedade que foi acostumada a enxergar e a pensar o mundo sempre cindido entre duas realidades distintas, a da Casa Grande e a da Senzala, a do Sobrado e a do Mucambo, a do Morro e a do Asfalto, a do Luxo e a do Lixo.

Notadamente, essa é uma marca da constituição histórica da sociedade brasileira. Fomos acostumados a nos comportar como sendo de uma classe e não de outra. Defendemos o nosso lugar social como algo naturalmente estabelecido. Como Tereza Cristina ou como Griselda, sempre mantivemos o desejo manifesto de subir, de alcançar o cimo da marcação social, de estar por cima e vislumbrar os outros a partir da cobertura, mesmo que seja a da laje.

O preconceito e a discriminação - estas armas mortais que atingem diretamente o subconsciente das pessoas fazendo emergir subjetividades microfascistas - são reflexos dessa luta que se trava tanto às claras quanto por baixo do verniz no cotidiano da sociedade brasileira. Quem de nós, por exemplo, já não presenciou o descaramento de uma fala ou de uma atitude preconceituosa, notadamente voltada àqueles que estão fora de lugar, que carregam o estereótipo daquilo que a sociedade em geral rechaça por não se “enquadrar”, por não fazer parte de determinada ordem que se tem como natural ou presumida?

Esta luta de classes, que não se dá exclusivamente na ordem simbólica, atiça em cada um dos lados o desejo de vingança social, atiça o cheiro do sangue e do ódio reprimido. Cada vez mais me convenço que o brasileiro está além daquele mito que diz que somos cordiais, de que vivemos numa democracia racial e social. Estou quase convencido de que somos o contrário disso tudo. Temos ainda muito ódio reprimido. Veja-se, por exemplo, nosso mal resolvido passado escravocrata, nosso racismo disfarçado, nosso ódio lançado contra nordestinos e nortistas, contra trabalhadores de posição mais modesta, contra índios, prostitutas, homossexuais, contra pobres e agora contra os “emergentes”. Odiamos também os ricos, os filhinhos de papai, os políticos, as madames, os brancos, as loiras, os que usam roupa de grife e dirigem carros importados etc.

Enfim, somos uma sociedade em luta constante. Tanto na realidade quanto na ficção uns ficam postados na trincheira de Griselda, defendendo os de baixo e tudo o que ela representa, enquanto outros ficam colocados estrategicamente na trincheira de Tereza Cristina, defendendo os de cima e tudo o que ela também representa. Vibramos com cada tapa, com cada petardo disparado, com cada vitória no campo do inimigo como se aquilo aliviasse em nós todo esse ódio secular de classe que nos acompanha. A ficção naquele momento assume o lugar da realidade, ela vai significando a vingança nossa de cada dia. Ela lava a alma, concordam comigo?

________
*As novelas devem servir para denunciar a realidade. Se não for assim, desligue a TV.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...