(imagem: reprodução biblioteca Usp)
Depois de se afastar de atividades no governo,
Michel se isola na torre do castelo da família, na região de Montaigne. No teto
de sua biblioteca, grava frases em grego e latim de seus autores favoritos da
Antiguidade. Passa a respirar diariamente aqueles nomes. Memoriza aqueles
versos. Repete cada sentença. Comenta linha a linha aqueles autores vindos de
muitos séculos. Incorpora-os. Dialoga com eles como quem conversa à mesa ou
troca confissões em espaços de intimidade.
É esse o clima de fundo
para a escrita de Ensaios, entre 1580 e 1588, que
revolucionou a literatura em três pontos essenciais. Primeiro, ao criar um novo
gênero literário homônimo, no qual a digressão é mais importante que o assunto.
Segundo, por trazer à luz um dos primeiros pensadores ocidentais a incorporar,
a partir dos relatos dos viajantes, o relativismo antropológico, e a refletir
filosoficamente sobre os costumes dos índios brasileiros. Inspirando-se nas
descrições de Jean de Léry, recém-chegado à França, compara-os aos sábios da
Antiguidade grega. Terceiro: traz para o primeiro plano da literatura a
interioridade e a consciência do autor. Como diz Montaigne ao leitor: “Eu mesmo
sou a matéria deste livro.” Em um de seus impecáveis ensaios, cujo tema é
justamente os livros, lemos uma de suas centenas de máximas: “Não faço nada sem
alegria.”
É justamente essa frase em
francês o ex libris que consta na primeira página de cada
um dos 40 mil volumes da biblioteca pessoal doada pelo empresário José Mindlin
e sua mulher Guita à Universidade de São Paulo (USP). Parte desse acervo
pertencia ao bibliófilo Rubens Borba de Moraes, cuja biblioteca foi guardada
pelo casal desde a sua morte. Mas antes dessa forma final, conhecida como
brasiliana, quem guardava essas preciosidades era a própria casa de José e
Guita, no Brooklin, em São Paulo. Espaço geograficamente muito distante das
torres do castelo de Montaigne, mas muito próximo do nobre Michel, em seus
mergulhos silenciosos na interioridade infinita dos livros.
Colecionador de obras raras
Por outro lado, um dos corações dessa brasiliana é
a coleção de obras raras escritas pelos primeiros viajantes que percorreram e
descreveram as terras brasileiras. Desse modo, além de viver, como Montaigne,
em constante alegria com os livros, Mindlin refez o seu percurso em ordem
inversa. Enquanto Montaigne sinaliza a boa nova dos novos costumes descobertos
em além-mar e no Novo Mundo, Mindlin preserva todos os pontos de vista deixados
por esses viajantes e naturalistas europeus do antigo continente, cujas obras,
em sua heterogeneidade, são uma das maiores fontes de estudo e compreensão da
natureza e da cultura dos povos que habitaram o Brasil entre os séculos 16 e
19.
Literaturas brasileira e
portuguesa; relatos de viajantes e de naturalistas que escreveram sobre a terra
brasilisem diversas línguas; manuscritos históricos e literários,
tanto originais quanto provas tipográficas; periódicos; álbuns ilustrados;
livros científicos e didáticos; edições valiosas de grandes obras da literatura
nacional; compêndios de iconografia; livros de artistas; gravuras e muitas
primeiras impressões e volumes autografados pelos próprios autores. Primeiro a
biblioteca tomou o próprio espaço interior da casa dos Mindlin. Em seguida,
ainda dentro dos seus domínios, ocupou duas construções, na parte dos fundos,
climatizadas e concebidas para receber um a um os livros que iam se somando à
coleção monumental.
Por fim, como o cavalheiro Michel deixou os
serviços do Estado para se dedicar aos ensaios e ao convívio com os livros, ao
se aposentar, em 1996, da Metal Leve, empresa que fundou e presidiu, Mindlin
pôde se aprofundar nessa atividade que havia começado na adolescência:
colecionar obras raras. Foi assim que conseguiu construir a maior e a mais importante
biblioteca particular do Brasil. Diferentemente de outros colecionadores, ao
tratar de Mindlin, percorre-nos sempre uma atmosfera de proximidade, criada por
sua personalidade e sua ligação afetiva emblemática com os livros. Falar de
Mindlin é sempre recompor o passado. Aguçar a memória para ler as entrelinhas
dos gestos. Encontrar para cada expressão facial um livro. Um autor. Um volume.
Uma palavra.
O mundo e a palma da mão
Toda biblioteca pessoal, antes de ser uma
biblioteca, é pessoal. Uma extensão daquele que a criou. Cada livro, um
vestígio de sua vida. Um livro não traduz apenas aquele que o escreveu. Contém
em si todos os que o leram. Revela todos os que, de mãos em mãos, o
preservaram. Mindlin sempre frisou que ele e a mulher nunca foram proprietários
da biblioteca, aberta aos amigos e a quem quisesse visitá-la. Eram seus dois
guardiães. Em sua casa, em primeiro plano, duas poltronas, a de José e a de
Guita. Ao fundo, uma estante na qual os títulos se avolumavam. Destacava-se, na
horizontal, a enorme edição dos desenhos de Debret sobre fauna e flora
brasileiras, que depois ganhariam vida nas melhores páginas de Guimarães Rosa.
Lembro-me de Mindlin folheando a edição parisiense,
saída dos prelos de Firmin Didot Frères, em 1834. Vejo-o cotejando os diversos
volumes de Henri Ternaux-Compans sobre a descoberta da América, publicados em
1841. Ele passa o indicador pelas ranhuras gastas das gravuras, placidamente
observando a gravura de um ritual antropófago descrito por Hans Staden, na
edição de Marpurg e Kolben, de 1557. Pássaros, plantas, mamíferos e árvores
pintados por Von Martius, nos diversos volumes da edição de Leipzig, de 1871.
Imagino-o observando a cartografia de todas as ilhas do mundo, composta por
Benedetto Bordone na edição vêneta de Francesco Di Leno, no início do século
16. Ainda hoje posso visualizá-lo, andando em companhia de Francisco Adolfo de
Varnhagen, nas edições Laemmert, de 1854. Entrevejo-o a sós, analisando a
coletânea de viagens de Fracanzano da Montalbodo, na edição de 1507, que
noticia a viagem de Cabral, primeiro livro em que o Brasil foi mencionado.
De onde vem essa ambição de abranger o mundo em uma
sala de leitura? Talvez o livro seja justamente a materialização dessa
nostalgia da unidade inapreensível da vida. Isso porque o livro é a tecnologia
mais revolucionária que jamais foi criada, pois consiste em converter, em um
único gesto (a leitura) duas dimensões aparentemente inconciliáveis: o mundo e
a palma da mão. É, desde o seu surgimento, uma maneira de exteriorizar o sistema
nervoso central e a memória humana sob a forma de um objeto material. Por isso
seu fascínio indescritível, que deu ensejo até à definição das chamadas
religiões do livro.
A memória nos trai bem
Talvez possamos identificar
esse desejo de conciliar duas magnitudes, amplidão mundana e interioridade
reflexiva, logo nos primeiros passos de Mindlin. Sua primeira obra rara,
comprada aos 13 anos, chama a atenção: Discurso Sobre a História Universal, de
Bossuet, em uma edição de 1740. Estaríamos aqui diante de uma ânsia juvenil de
englobar o mundo? O adolescente já intuía a vocação de colecionador de amplos
voos que lhe caberia? Por que, em vez de jogar bola, começou a brincar, nessa
idade tenra, com o orbe da Terra? O que descobriu em segredo entre páginas amarelecidas
de outras eras? A história sacra narrada pelo grande pregador francês do século
17 confere um sentido de salvação à história humana. Por isso, é abrangente.
Universal. Pretende descrever as motivações divinas que regem as vidas no
interior do tempo. Reconverter o tempo do mundo em tempo histórico. Fazer os
extremos se tocarem. O eterno e o instante. O cosmos e o ser humano. Como diria
Jorge Luis Borges, o universo e a biblioteca.
Mindlin não mensurava os livros por uma distinção
de raridade ou valor, mas de preciosidade. Distinguia os mais queridos. Os mais
almejados. Os mais difíceis de ser obtidos valiam mais. Diferentemente do que
muitos possam supor, mesmo tendo à mão as edições mais raras, Mindlin deixava
em um lugar privilegiado de sua poltrona de leitura a obra de um de seus
escritores favoritos: Marcel Proust. Não poderia ser diferente. Depois de
Montaigne, apenas Proust conseguiu tocar aqueles espaços poéticos de pura
intimidade e recolhimento, aquela região da vida que, em solidão povoada,
materializa o próprio ato da leitura.
A busca do tempo perdido realizada por Proust é
também uma busca da relação entre verdade e imaginação. Desdobra-se naqueles
espaços de devaneio, nos quais somos o que poderíamos vir a nos tornar no
futuro e seremos o que está virtualmente inscrito em um passado hipotético que
ignoramos. Por isso, a memória nos trai. Mas nos trai maravilhosamente bem,
pois há muitos momentos recordados que têm mais força e espessura vital do que
os momentos vividos. Isso não diminui em nada a vida de quem se entrega à doce
traição da leitura, às minúsculas infrações dos livros, nos quais nos separamos
da vida cotidiana por um tempo para vivermos uma espécie de isolamento feliz e
consentido.
As impressões digitais
Penso aqui se toda essa obra deixada por Mindlin
não foi um gesto proustiano de redescobrir o tempo e revivê-lo, em espirais
cada vez mais vastas, transformando o passado imaginado em uma realidade
presente. O lampejo do primeiro livro, comprado aos 13 anos, é a marca da memória
por meio da qual Mindlin conseguiu iluminar a si com mais força. Tornou o
passado ainda mais presente aos seus olhos, cercado pelos objetos que amava,
reverberando em círculos. Assim, repetiu não apenas a raridade de seu primeiro
Bossuet, mas também o seu conteúdo. Traduziu a história universal de homens
anônimos na forma universal singularizada de um indivíduo e de sua biblioteca.
O belo prédio que agora abriga a Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), no campus da USP, foi concebido por Eduardo
de Almeida e Rodrigo Mindlin Loeb, que se inspiraram na New York Public Library
e na Biblioteca Nacional de Paris. Alguns andares circulares guardam a
brasiliana, como a biblioteca hexagonal sonhada por Borges.
Caminho por seus corredores, toco as lombadas
gastas, observo em perspectiva a forma indefinida que a infinidade de livros
cria quando abertos ao horizonte. Os círculos concêntricos se espelham, no
interior das paredes de vidro. As impressões digitais de Mindlin continuarão
aqui. Escritas em formas invisíveis, como na indefectível torre de Montaigne. E
ele, sentado, nas poltronas de couro do saguão. Agora ele se mistura aos
buritis de uma edição autografada por Guimarães Rosa, às anotações minuciosas
de Manuel Bandeira, aos desenhos infantis de Oswald de Andrade, às falenas de
uma edição de 1870, à caligrafia das anotações às margens de Machado.
Com alegria
Como dizia Mindlin, o vírus do amor aos livros é
incurável. É preciso inoculá-lo no maior número possível de pessoas. Eu menti.
Infelizmente, nunca conheci José Mindlin. O que fiz nestas linhas foi um
exercício de admiração, como os do filósofo romeno Emil Cioran. Esboços de
intimidade e de leituras incorporadas. Marcas de fisionomias alheias que
incorporamos sem as ter conhecido. Porém, em outra ordem de realidade, não
tenho dúvida de que um dia estive na casa dos Mindlin e folheei as primeiras
edições de alguns dos seus maiores escritores. Naveguei pelo Atlântico, cruzei
tempestades, naufraguei em meio a canibais, observei a fauna e a flora das
costas brasileiras no século 16. E agora, ao atravessar o umbral da brasiliana,
é a torre de Michel que se abre e fecha suas portas às minhas costas. Para que
em silêncio eu possa povoar esse labirinto que no conduz à liberdade.
Por mais monumental que seja o edifício. Por mais
grandiosa que seja a erudição. Por mais preciosas que ressoem as raridades que
se espalham nessas estantes, em nenhum momento perco de vista que tudo começou
com alegria.
*Rodrigo Petrônio in. “Eu&Fim
de Semana” . Valor Econômico,
22/3/2013.