sábado, 9 de março de 2013

A vida dos homens infames*


Este não é um livro de história. (...) É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos. (...). Não é uma compilação de retratos que se lerá aqui : são armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas cujas palavras foram os instrumentos. Vidas reais foram “desempenhadas” nestas poucas frases; não quero dizer com isso que elas ali foram figuradas, mas que, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com freqüência sua morte, em todo caso seu destino foram, ali, ao menos em parte, decididos. Esses discursos realmente atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras.

Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. (...) Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder. (...).

Quis, em suma, reunir alguns rudimentos para uma lenda dos homens obscuros, a partir dos discursos que, na desgraça ou na raiva, elas trocaram com o poder. (...) Divirtamo-nos, se quisermos, vendo aí uma revanche: a chance que permite que essas pessoas absolutamente sem glória surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua raiva, sua aflição ou sua invencível obstinação em divagar, compensa talvez o azar que lançara sobre elas, apesar de sua modéstia e de seu anonimato, o raio do poder.

Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobreviveram do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui, juntar alguns restos.


*Michel Foucault in. “Estratégia, poder-saber”. Ed. Forense Universitária, 2003, pp. 203 – 222.

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Filme : Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère... (1976, René Allio).


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