terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lima e a Bruzundanga nossa de cada dia*



“A minha estada na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria. [...] É que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, vivendo de expedientes. Entretanto, o povo só acusa os políticos, isto é, os seus deputados, os seus ministros, o presidente, enfim. O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. Apegam-se a velharias, a coisas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades do governo. A primeira coisa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população. [...] Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes. [...] Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos no Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a coisa mais fácil desta vida. Vive sugada, esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que na sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados, afora vencimentos que vem de outra qualquer origem, empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres. [...] A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece.”

Lima Barreto, Na Bruzundanga, 2009.

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*Um fora de lugar, essa talvez seja uma definição adequada, embora insuficiente, para definir o carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Pobre, mulato, alcoólatra e escritor. Lima Barreto foi tudo isso vivendo em um dos períodos mais instáveis da história do Brasil. Observador atento da realidade, Lima acompanhou de perto a queda da Monarquia e a primeira infância da República, retratando em suas obras aspectos do cotidiano da capital do país, o mesmo Rio de Janeiro de Machado, só que em outras tintas.
Quem hoje se atreve a ler alguma obra de Lima Barreto ainda se surpreende com a atualidade do autor. Como se pôde ler no recorte acima, a agudeza da observação e a ironia fina são características da prosa limabarretiana. Nesse trecho, que fala da política e dos políticos da Bruzundanga, um país fictício muy familiar, Lima descreve o corrompido fazer político bruzundanguense. Uma crítica, sem sombra de dúvida, à sociedade brasileira, ao seu viciamento político, que como sabemos anda pior a cada pleito, mas uma crítica também ao próprio povo, que tem o governo que merece ou fez por merecer.
Lima Barreto sempre foi um incompreendido entre os seus pares, sendo mais de uma vez recusado à Academia Brasileira de Letras, o que o fez viver angustiado diante das dificuldades socialmente impostas a um escritor como ele, eram tempos parnasianos, mas também de retumbante hipocrisia racial. Lima Barreto morreu em 1922 de colapso cardíaco, resultado do excesso de bebida. Lima ficou esquecido durante algum tempo até que sua obra e sua vida se tornassem objeto de interesse por alguns admiradores, como o seu biografo Francisco de Assis Barbosa, e por certa esquerda que queria enxergar um outro Brasil, agora visto de baixo. Dentre suas principais obras destacam-se, além de contos e crônicas publicados em jornais da época, Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), Vida e Morte de M.Gonzaga de Sá (1919), Na Bruzundanga (1923, obra publicada postumamente) etc. Para finalizar, deixo um convite de leitura fazendo minhas as palavras do professor e ensaísta Antonio Arnoni Prado (Unicamp): “Temos que ler Lima Barreto porque não somos um país livre, não somos um país integralmente livre. Temos que ler Lima Barreto porque somos um país socialmente injusto, somos um país onde os pobres continuam pobres e as elites continuam no lugar delas. Não é para aprender português que se ler Lima Barreto, lê-se Lima Barreto pra aprender a ser brasileiro.”

Por Josenias Silva
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