quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Mulheres Públicas*

Photo: Washington, D.C., circa 1919.

O lugar das mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e do poder. “Uma mulher em público está sempre deslocada”, diz Pitágoras. Prende-se à percepção da mulher uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela incomoda e ameaça. A mulher noturna, mais ou menos feiticeira, desencadeia as forças irreprimíveis do desejo. Eva eterna, a mulher desafia a ordem de Deus, a ordem do mundo.

O corpo das mulheres, esse poço sem fundo, apavora. E, deste ponto de vista, as ciências naturais e biológicas, em pleno florescimento a partir do século XVIII, nada resolvem. Ancoram um pouco mais a feminilidade no sexo e as mulheres em seus corpos, escrutados pelos médicos. Estes as descrevem como doentes perpétuas, histéricas, à beira da loucura, nervosas, incapazes de fazer abstração, de criar e, acima de tudo, de governar.

[...]

Essas representações, esses medos atravessam a espessura do tempo e se enraízam num pensamento simbólico da diferença entre os sexos, cujo poder estruturante foi mostrado pelos antropólogos. Mas assumem formas variáveis conforme as épocas, assim como as maneiras de geri-las. Nas sociedades que pensam o político, isso se traduz por uma divisão racional dos papéis, das tarefas e dos espaços sexuais. [...] Para os homens, o público e o político, seu santuário. Para as mulheres, o privado e seu coração, a casa. Afinal, esse poder sobre os costumes não é o essencial? Muitas mulheres pesam assim, e esta é uma das razões de seu relativo consentimento.


*Michelle Perrot in. “Mulheres Públicas”. Ed. Unesp, 1998, pp. 8-10.


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Nota: Até hoje estou horrorizado com certa faceta da entrevista concedida pela PresidentA Dilma Rousseff à jornalista Patrícia Poeta (Fantástico - 11.09.11). Mas gostaria de começar falando sobre o lugar público da mulher na história e no atual. No fragmento acima, de Michelle Perrot, ressoam algumas questões, cito uma delas: “Existem lugares sociais específicos para homens e mulheres?” Bem, ao longo da história a mulher foi sistematicamente excluída do espaço público, a própria expressão Mulher Pública, que ainda causa frisson, muitas vezes se tornou sinônimo de Mulher depravava, “da vida”, “rapariga”, “puta”, lúbrica etc, etc, etc. O espaço social público, como que naturalmente, foi sendo então associado ao homem. O Homem público, que exerce seu papel de cidadão, ou seja, que transita pelos espaços da cidade e politicamente participa das decisões, foi o modelo ideal do homem na história. Assim, o público foi sendo construído como o espaço social do masculino e o privado do feminino. Um homem público, um cidadão. Uma mulher pública, uma desfrutada. Obvio que esse é um modelo hegemonicamente falocêntrico, que só interessa a uma das partes da trama social. Desse modelo emergiu o ideal de mulher: frágil, passiva, dócil, prendada, sensível, recatada, casta, submissa, apolítica, assexuada, figura representada em última instância pelas correspondentes: mãe, esposa e dona-de-casa. Quer dizer, mulheres para o privado, para o lar. O oposto disso é a anomalia, é a femme fatalle, a Eva pecadora, a Pandora. Enfim, a citada entrevista revelou uma faceta interessante, revoltante para alguns, que foi a busca de uma ESSÊNCIA FEMININA em Dilma. Como se ela, ocupando um espaço público, estivesse transgredindo uma lei natural, uns dirão Divina, ao não apresentar os Dotes que os da “espécie” assumiram para si. O mundo é pensado, interessadamente, no masculino, no bom e velho poder do macho. Quem ousa desafiar, até mesmo no campo da linguagem (presidenta?), é rechaçado. Colocar sob suspeita o lugar público da mulher é assumir ideologias que necessariamente continuarão a segregar e a tornar mais difícil o justo lugar da igualdade entre os sexos, falo dos vários sexos. Que a PresidentA seja sexualmente o que queira ser, não tenho nada com isso, só não aceito idiotice, como a da nobre/pobre jornalista.

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