sábado, 10 de setembro de 2011

Melros*



Ao longo dos últimos duzentos anos, o melro abandou as florestas para tornar-se um pássaro das cidades. Primeiramente na Grã-Bretanha, desde o final do século XVIII, algumas dezenas de anos mais tarde em Paris e na bacia do Ruhr. No decorrer do século XIX, ele conquistou, uma após a outra, as cidades da Europa. Instalou-se em Viena e em Praga por volta de 1900, depois progrediu em direção ao leste, ganhado Budapeste, Belgrado e Istambul.
Aos olhos do planeta, essa invasão do melro no mundo do homem é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos espanhóis ou do que o retorno dos judeus à Palestina. A modificação das relações entre as diferentes espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de uma ordem mais elevada do que as mudanças das relações entre os diferentes grupos de uma mesma espécie. Que a Boêmia seja habitada pelos celtas ou pelos eslavos, a Bessarábia, conquistada pelos romanos ou pelos russos, a Terra não dá importância a isso. Mas que o melro tenha traído a natureza para seguir o homem no seu universo artificial e contra a natureza, eis um fato que muda alguma coisa na organização do planeta.
Contudo, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão da cidade do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção estática do que é e do que não é importante; fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, enquanto, às escondidas, às nossas costas, o insignificante conduz sua guerrilha que terminará por mudar sub-repticiamente o mundo e vai pular sobre nós de surpresa. 

Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento, 1978.

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* Verdadeiramente fomos acostumados a olhar o mundo sob o prisma dos gigantes, altos, soberbos, senhores das alturas, recusamo-nos a olhar o minúsculo, o ínfimo, o pequeno gesto, ou sutileza escondida no detalhe. Grandes e cegos, é o que somos. Talvez a vida tivesse outro sentido, além dos muitos que já tem, se reacusássemos alguns sistemas que já nos capturaram, como por exemplo, aquele que diz que algumas coisas são mais importantes do que outras.



Por Josenias Silva
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