quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Canto para a minha Morte*

Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar
Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa a bater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida.


Raul Seixas, Canto para a minha morte, 1976. (áudio)

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*Um dos mais belos poemas já compostos sobre a Morte, ou para a Morte. Raul Seixas (1945-1989) toca profundamente em um tema quase sempre evitado, embora, sejamos obrigados a reconhecer que  somos a única espécie para quem a Morte está presente ao longo da Vida. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) em sua principal obra, Ser e Tempo (1927), já havia afirmado que “o homem é um ser para a Morte”, ou seja, somos marcados pela condição da perda e não somos seres acabados, mas em acabamento. Heidegger observa a Morte na perspectiva de um “sobrevivente”, enquanto Raul prefere, neste poema, contemplar a sua própria Morte. Distintas posições, portanto. Mas que colocam em questão esta fronteira tênue que nos separa, ou aproxima, do momento final de nossas existências. E como indagou Raul, morre-se de muitas formas, mas com que roupa ela virá vestida? Será doce, amarga, letárgica, ou será apenas um sonho sem fim? Venha, mas demore a chegar... Morte, Morte... Vida.



Por Josenias Silva
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