sábado, 18 de fevereiro de 2012

Lima Barreto nas ruas de hoje*

Por José Castello



Entre tantas coisas, o que mais me entusiasma na leitura de "O passeador", romance de Luciano Hidalgo (Rocco), é seu esforço, delicado mas firme, para recuperar a imagem ainda hoje tão esmaecida, tão "escolar", do genial Lima Barreto. Seu esforço para segui-lo pelas ruas de um Rio de Janeiro que decai, enquanto se moderniza - o escritor como testemunha aflita de uma transformação. Para recuperar sua força, tão desprezada pelas vozes enfáticas e cheias de si do Modernismo de 1922. 

Ainda hoje, o Modernismo de 22 ergue-se como uma barreira entre nosso presente, nosso acelerado século 21, e a obra de Afonso Henriques de Lima Barreto. Morto justamente no ano de 1922, aos 41 anos de idade, ele teve no modernismo uma espécie nada sutil de carrasco. Com suas palavras de ordem renovadoras, sua aposta cega nas vanguardas, sua obsessão pelo futuro, os modernistas não souberam ver a força renovadora, a postura avançada, a aliança com o futuro que a obra de Lima significa. 

Misturando dados biográficos com uma imaginação exuberante, Luciana Hidalgo nos dá um romance que coloca Lima Barreto justamente onde ele devia sempre estar: no centro de uma grande aflição. Quase um século depois de sua morte, essa alma andarilha e aflita continua a nos servir como modelo para enfrentar um mundo que há muito desistiu das vanguardas (e,portanto, do futuro), mas que se transformou numa espécie monstruosa de devorador do presente. 

Mundo do imediato, do instantâneo, do tempo real, como se sentiria nele Lima Barreto? Certamente, nada bem. Contudo, ele se pudesse caminhar pelo Rio de Janeiro de hoje, onde duas vertentes opostas - beleza profunda e modas fúteis - também se misturam, nos ofereceria, por certo, um olhar devastador. Aquele olhar em que a crítica forte se mistura com a doçura, mescla que tanto nos falta. 

Lima Barreto via com desconfiança o mundanismo - e veria com a mesma desconfiança, por certo, o universo de celebridades que, hoje, toma a frente da cena midiática. Desconfiava do progresso a qualquer preço - e hoje desconfiaria também de certa idéia repetitiva e vazia de futuro que, enquanto parece avançar, nos arrasta para trás. Mulato em um país que acabava de abolir a escravatura, Lima veria hoje com desconfiança, por certo, a suposta "falta de preconceitos" raciais que esconde, no dia a dia, os preconceitos mais repulsivos. 

Faltam-nos os olhos agudos de Lima Barreto, sempre discreto, sempre pequeno, um tanto irônico quando pensa em si mesmo. Sem pose, sem desejo de fama e fortuna, livre das pressões da glória, disposto apenas - como fazem os grandes escritores - a viver e escrever. Se frequentava, com entusiasmo, um sebo na rua Gonçalves Dias, hoje, por certo, ele ainda estaria no mesmo sebo - em vez de perambular pelas livrarias de shopping. Retrocesso? Apego doentio ao passado? Ou, vamos experimentar pensar assim, busca de um caminho que seja apenas seu? 

O andarilho solitário é o oposto do homem contemporâneo que busca os holofotes e flerta com as multidões. O gosto pelo lentos passeios a pé (o flanar) contrasta com a alegria rápida dos jovens de hoje (Lima morreu jovem!), que preferem a inércia das lan house ou, ao contrário, as performances espetaculosas dos esportes radicais à lentidão do livre pensar. Observe-se as fotos que ficaram do escritor e nelas encontramos uma placidez que se mistura com a paciência. Paciência que tanto nos falta. 

Lima Barreto: nosso contemporâneo. É através de uma ficção, um romance delicado, e não de uma defesa de tese, que isso se torna mais claro. O romance de Luciana Hidalgo nos sugere que leiamos o velho Lima com novos olhos. Com nossos olhos - e não com os olhos daqueles que o desprezaram e até tentaram anular. Com os olhos do presente, um presente que não se ilude nem com o sangue do passado, nem com as miragens do futuro. Que tal encarar Lima Barreto? Um mundo inteiro se abre.



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