sábado, 17 de novembro de 2012

Ronda da Meia-Noite*

Reprodução de capa da edição original 
(São Paulo, Typ. Cupolo, 1925)

Da cidade, ou da vida civilizada como diriam os cronistas da belle époque, se pode esperar tudo. Dessa forma me pego a ler Sylvio Floreal (pseudônimo de Domingos Alexandre) e suas crônicas sobre a São Paulo do começo do século XX. Uma cidade "veloz e voraz" emerge  picotada dessa experiência. 

Narrador urbano. Cidade em frisson constante. Ausência de silêncio. Há sempre um passo, um detalhe qualquer na paisagem. Movimento & Vertigem.

Logo percebo que foi "noctambulando a esmo" e "cumprindo o seu dever de citadino" que Sylvio Floreal juntou  o material para lançar Ronda da Meia Noite (1925), livro no qual se pode ver lado a lado os vícios, misérias e esplendores daquela que viria a ser a maior metrópole do país, a Paulicéia desvairada de Mário e a cidade de ar metálico de todos os dias. 

Continuo a leitura. 

Aos poucos a bisbilhotice do cronista aguça a minha e logo sou informado que, dos vícios, a cocaína já era um dos mais devastadores nas primeiras décadas do século XX. 

"Afora os vícios da carne, com todo  corolário dos ingredientes que o torna encantadores e fascinantes (...) também temos os vícios originários de uma infinidade de tóxicos. Vícios catacumbais e mortíferos, porque somente matam no transviado a razão, deixando assim o gajo com o sistema nervoso lastimavelmente desarranjado, em completo tremelique, e a bússola da memória a navegar ao léu dos ventos pérfidos da loucura. A cocaína, esse olímpico veneno, como dizem os seus ardentes consumidores, de há muitos anos é usada na atmosfera penumbrosa, morna e languescente das garçonnières por alguns indivíduos que se desgraçaram em Paris, torrando a fortuna na aquisição desses e de outros vícios cultivados por lá."

Me dou conta de que não era nada extraordinário para uma grande cidade. Era o vezo lastimável de uma urbe qualquer. Um prenúncio para os dias que correm.

O espetáculo das ruas sempre me fascinam. 

Corro os olhos página à dentro.

O narrador me conta que as ruas cobertas de trilhos e passos faceiros eram uma vitrine da cidade no começo do século. Assim, na rua Direita "passam elegâncias improvisadas, atitudes berrantes, postiças, gestos imitados e decalcados, maneiras forçadas, exóticas, e mesuras, tiques, sestros e cacoetes plagiados de afogadilho, à última hora, de outras civilizações e diferentes povos. É uma galeria de filáucias, uma feira de contrastes, um mostruário de figuras humanas todas ciosas por patentear a riqueza monetária, o falso orgulho da estirpe, ou, então, simplesmente, o aplombo da indumentária. É uma perfeita orgia de exibições, onde não falta o mínimo detalhe, o mais imperceptível adereço exigido pelo pedantismo imperativo do bom-tom e das normas escorreitas da burguesíssima urbanidade."

Noutro ponto, não tão à direita, num albergue noturno na Rua Asdrubal do Nascimento, n. 28. 

"Desfilam os párias, os hilotas, os mendigos verdadeiros e os disfarçados, os malandrinhos por ofício, os vagabundos por tara e os bêbados por fatalidade. Toda a fina flor da desgraça, todas as misérias da Capital, têm ali um representante. Vão passando as mulheres - ruínas ambulantes - carcomidas pela sífilis, com ares de velhas, dessa velhice começada pelo sofrimento e acabada pelo vício; carregam filhos nos braços e no ventre. Passam viúvas autênticas e viúvas que marido nunca tiveram. Imploram uma cama para dormir."

Dos esplendores à miséria, talvez na mesma profundeza trágica do presente. 

Apelo para a arte.

Que venha o cinema e o futebol. 

"Atualmente, São Paulo, desde a plebe que se desunha no trabalho afanosamente, até as classes que brunem ociosamente as unhas, morre de amores por dois gêneros de passatempo diametralmente opostos - cinema e futebol. A miuçalha das suburras e os grandaços da avenida Paulista deliram, indistintamente, na tela com os gênios da mudez, no campo, com os paladinos do potapé e do coice."

Adorei! Paladinos. 

No Cinema, não cabem os adjetivos ("delicioso veneno visual"; "escola da vertigem"; "triunfo da nevrose"; "apoteose do absurdo", etc.) e os bolinadores. 

Neste último caso.... (risos) Bolinadores?!

Leio com atenção.

 "O espectador casquilha, dotado de safardanices vai ao cinema e desenvolve uma piratagem digitálica sem dó nem piedade, sobre certas fulanas do sexo mole, muito amigas de tais massagens feitas no escuro." Aquele, "bolinador de larga escola, astuto conhecedor da arte voluptosa de alisar finas epidermes, chega, maneiroso e cauto, senta-se, bem estendido, ao lado de uma mulher que de antemão ele sabe ou adivinha que não se esquivará às suas investidas. E lentamente começa a por em prática o seu intento, com umas encostadelas furtivas; e desse modo vai longe... Se a 'bicha' estrila, ele se afasta; se cala, avança heroicamente..."

Adeus contemplação! 

Só a boa e velha sacanagem universal!

Dos coronéis, figuras exóticas da próspera economia paulista, nada muito familiar.

"É um tipo lastimável que oscila entre o ingênuo e o devasso, esmaltado de sem-vergonhice por dentro e por fora. Internamente, tem um fundo moral de estopa embebido de vícios e trescala a almíscar de bode decrépito; externamente, oculta a senectude principiada pelos anos e completada pelas farras, sob o disfarce astucioso das pomadas, dos chinós e das dentaduras postiças."

Evoé! Cidade do Pecado! 

As "ilustres fulanas", que fizeram votos de viver à custa do sexo, "quase sempre loiras, para atrair o ouro, fascinadas pela rubínea fama criada pelo café; deslocam-se até do recanto mais ignorado do mapa-mundi e vêm até aqui com um catalogo de impurezas na alma e no sangue e as unhas afiladas e brunidas, afeitas ao traquejo de duas espécies de carícias: a de afagar 'peles' e peles! As profissionais do madalenismo, industriadas no mister de subtrair dinheiro com a gazua do sorriso, astutas e maneirosas, aparecem, instalam-se esplendidamente e lançam o seu nome felino na praça!"

Evoé! Baco!

Aprendo uma nova geografia.

"Na rua 25 de março, na baixada do Mercado, e nas ruas São Nicolau, Maria Benedita, Lourenço Gnecco e outras travessas escuras e fedorentas, funciona uma chusma de botequins pestilenciais, cada qual contanto na sua folha corrida uma esplêndida legenda negra de rolos, forrobodós e assassinatos."

Evoé! São Paulo!

"Salve! Cidade-Esperança! Desespero ditoso das improvisações."

O Passado rasga minhas pálpebras.

Fecho o livro. 

Uma cidade transborda.


[Texto de Josenias Silva, Mestre em História do Brasil]

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* Sylvio Floreal. Ronda da Meia-Noite: vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2002. 190p.


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