Desde o manifesto antropofágico de Oswald de
Andrade, na época da Semana de Arte Moderna de 1922, essa história de
antropofagia passou a ser o argumento preferido de quem lida com a invasão da
cultura estrangeira no Brasil. O que dizia Oswald, em síntese? Que a
melhor maneira de combater o inimigo não é apenas matando-o, mas matando-o e
comendo-o. Não basta destruir; é preciso assimilar, pois NÃO podemos
permitir que o inimigo desapareça sem nos deixar uma herança, um ganho substancial. Essa
metáfora veio recebendo diferentes leituras ao longo do século 20, e duas que
me tocaram de perto foram a do Tropicalismo nos anos 1960 e a do Movimento
Antropofágico da FC (formulado por Ivan Carlos Regina) nos anos 1980.
O problema é que quando dizemos que é preciso
devorar e digerir a invasão estrangeira há quem imagine que a gente deva se
transformar em consumidores compulsivos dela, engolindo tudo que o mercado nos
oferece nas livrarias, nos cinemas, na TV. Nada disso, amigos! Um canibal
(leiam Hans Staden!) é o sujeito mais gastrônomo que existe. É mais exigente do
que enólogo principiante, e mais detalhista do que gaúcho servindo churrasco
para estrangeiros. Quem devora indiscriminadamente o que lhe chega ao alcance
das mãos não é o canibal. É o zumbi.
O canibal escolhe o que vai devorar; não é
qualquer prisioneiro que cumpre os requisitos. Os índios não devoravam os
covardes, os que fugiam da batalha, os que se acovardavam e perdiam o amor
próprio. Faziam prisioneiros e os cultivavam durante semanas ou meses, não
apenas para um ritual de engorda, mas também como uma preparação espiritual
para o pseudo-combate (pois a execução implicava muitas vezes num desafio
verbal entre o carrasco e o condenado). Devorar o inimigo era absorver suas
qualidades, sua bravura, seu caráter. Só se comia alguém a quem se admirava.
Dizem que uma das coisas que salvaram a vida de Hans Staden foi o fato de que
ele de vez em quando chorava e pedia para não ser morto.
O canibal escolhe, vai em busca, captura, guarda,
devora ritualmente, faz uma festa. Sabe exatamente quem está devorando, e por
quê. Rejeita uma vítima, se ela não lhe for apetecível. Ou seja: ao
“antropofagizarmos” o rock estrangeiro, a ópera, a arte de vanguarda, a ficção
científica ou o que quer que seja, temos que ser igualmente exigentes,
críticos, “gourmets”, porque o canibal é assim. Já o zumbi é o contrário disso,
ele mastiga e engole o que lhe aparecer pela frente. É o fã eufórico e
ciumento, consumidor compulsivo, o imitador feliz, o re-comprador eterno, o
acumulador de bugigangas, o mastigador de best-sellers. Canibal é outra coisa.