sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Rosselini em silêncio*


Por José Castello



Observo pessoas que lêem no metrô, nos ônibus, aeroportos, nas praias agitadas do verão. Que lêem em qualquer lugar. É espantoso o poder de abstração que a leitura nos fornece. Toda a zoeira, todo o burburinho infernal do mundo contemporâneo, o falatório das ruas, bares e escritórios, tudo se dissolve nas páginas do livro aberto - que se transforma em uma espécie de redoma inviolável, a nos proteger da agitação externa.

Nada - nem os muros mais grossos, tampouco os vidros blindados - nos protege com tanta segurança. Na verdade, o silêncio não está no livro, mas no ato de debruçar-se sobre ele. Está no ato de introspecção. Experiência que pode ser vivida mesmo no cinema, a mais técnica e ruidosa das artes.

Federico Fellini gostava de lembrar do modo quase mágico como Roberto Rosselini (1906-1977), seu mestre, se distanciava do mundo enquanto filmava. Rosselini lhe mostrou que "o cinema também poderia ser feito na mais completa solidão, apesar de toda a confusão em volta". A lembrança está na longa entrevista que Fellini deu, pouco antes de morrer, em 1993, a Damien Pettigrew. Nos sebos ainda se pode encontrar uma edição brasileira desse diálogo, traduzido por Fernanda Borges e Roberto Paulino para a Nova Fronteira ("Eu sou um grande mentiroso").

Recorda Fellini do caos que caracteriza a experiência das filmagens, "essa mistura de desembarque militar na Normandia, de ataque de pára-quedistas, de batida policial em pleno mercado de peixes, somada a todas as psicologias caprichosas de vários atores e ainda ao aspecto técnico". Um verdadeiro front de guerra e de humores. Pois, em meio ao impensável caos, Fellini observou, muitas vezes, seu grande mestre, seguiu-o de perto, e se espantou com seu poder quase sobrehumano de abstração.

"Vi que ele ignorava completamente toda esta máquina guerreira tão mostruosa, hipertécnica, com todos os seus problemas de organização, de logística e de relações psicológicas". Ignorava como? Tranquilo, pacífico, Rosselini vagava entre aqueles corpos agitados e máquinas rangentes, regendo seu filme como se estivesse no topo de uma montanha. Ele era a montanha? Não, o próprio filme era a montanha. A arte, sim, nos eleva, somos apenas seus objetos.

Lembra Fellini ainda que essa lição - a do silêncio soberano - não se pode transmitir com palavras, e que só a aprendemos vivendo. Eis algo que se passa também na experiência da leitura, e também na escrita literária: de repente, o mundo exterior despenca em um grande vazio, "desaparece", e tudo o que temos para nos agarrar são as palavras. Mas agarrar-se em palavras? "As palavras são o corpo do pensamento", me lembrava, outro dia, meu amigo Murilo Salles - ele, também, talentoso cineasta. Palavras são invólucros, que guardam não só pensamentos, mas também aquele que os pensa. Ou, avançando mais um pouco, aquele que os lê (isto é, decifra).

Apostar na experiência do silêncio - atitude que nos parece demasiadamente oriental - é uma das estratégias cruciais do artista, esteja ele no Oriente, ou no Ocidente. Pensei nisso enquanto revia, hoje à tarde, "Viver" ("Ikiru"), o filme fabuloso de Akira Akurosawa (ele, um dos meus mestres). E constatei, mais uma vez, como o silêncio, para o cineasta japonês, era tão ou mais importante que a palavra.

É do silêncio que o burocrata Kanji Watanabe (vivido por Takashi Shimura), derruabado por um câncer terminal, se vale para superar a morte com a beleza da vida. É em silêncio - sem gritar, sem espernear, sem se exaltar, mas apenas seguindo quieto seu caminho - que ele renasce antes de se despedir. (Aliás: é em silêncio, e não mastigando pipocas, que assistimos aos grandes filmes. Isso, apesar dos shoppings, etc).

Mas, também para apreciar o silêncio, não só as imagens (dos cineastas), ou as palavras (dos escritores), é preciso erguer uma muralha invisível - longo manto caloroso - que nos proteja dos ruídos do mundo. A mesma colcha diáfana, mas inviolável, em que Rosselini se envolvia enquanto regia seus filmes.

Em resumo: tolice dizer que a agitação contemporânea nos impede de ler. Que ela nos atrapalha, nos dispersa, nos perturba. Que só aceitamos palavras bem mastigadas, ou em pedaços, para uma digestão fácil. Tudo isso é verdade, nosso mundo ferve e se fragmenta. Mas até por isso o ato da leitura se torna mais importante. Mais que isso: ele nos salva.




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*José Castello é jornalista e escritor, colunista do suplemento Prosa & Verso, de O Globo.
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