segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Parem de jogar cadáveres na minha porta*



Por Affonso Romano de Sant´anna




Parem de jogar cadáveres na minha porta.

Tenho que sair
                                       — respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligues.

Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.

Estou em Essaouira, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas de Diamantina.

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.

Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi,
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.

Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.

Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
                                  — na Cidade Proibida na China.

Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.

Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
                                 na minha cama
dificultando
                    que alcance o corpo da mulher que amo.

Afastem de mim
                                  o meu
                                                    o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
    como um Sísifo moderno
                                                                    desesperado

julgar
          — que o tinha que carregar.


 Affonso Romano de Sant’Anna, Sísifo desce a montanha, 2011.
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*Parem de jogar cadáveres na minha porta. Tenho que sair – respirar...
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