quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O perfume*



Por PATRICK SUSKIND





No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis. A sua história é contada aqui. Ele se chamava Jean-Baptiste Grenouille e se, ao contrário dos nomes de outros geniais monstros como, digamos, Sade, Saint-Just, Fouché, Bonaparte etc, o seu nome caiu hoje no esquecimento, isto certamente não ocorreu porque Grenouille tenha ficado atrás desses homens das trevas mais famosos em termos de arrogância, desprezo à raça humana, imoralidade, ou seja, em impiedade, mas porque o seu gênio e a sua única ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na história: o fugaz reino dos perfumes.

Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor.

Naturalmente, em Paris o fedor era maior, pois Paris era a maior cidade da França. E em Paris, por sua vez, um lugar havia onde o fedor imperava de modo especialmente infernal, entre a Rue aux Fers e a Rue de la Ferronnerie, ou seja, no Cimetière des Innocents. Ao longo de oitocentos anos, tinham sido para ali trazidos os mortos do hospital Hôtel-Dieu e das comunidades eclesiais das redondezas; ao longo de oitocentos anos, carretas traziam até ali, dia após dia, cadáveres às dúzias, jogados em longas covas; ao longo de oitocentos anos, acumulados nas criptas e ossários, camadas e mais camadas de ossinhos. E só mais tarde, às vésperas da Revolução Francesa, depois que algumas das covas haviam desabado perigosamente e o fedor do saturado cemitério havia levado os moradores das cercanias não mais a meros protestos, mas a verdadeiros levantes, é que ele foi finalmente fechado e transferido, tendo os milhões de ossos e crânios sido enterrados nas catacumbas de Montmartre e, no seu lugar, surgiu uma praça com uma feira livre.

Bem ali, no lugar mais fedorento de todo o reino, foi que nasceu Jean-Baptiste Grenouille, a 17 de julho de 1738. Era um dos dias mais quentes do ano. O calor pairava como chumbo por sobre o cemitério e empurrava para as ruas vizinhas os gases da putrefação que cheiravam a uma mistura de melões podres e chifre queimado. Quando as dores começaram, a mãe de Grenouille estava numa peixaria da Rue aux Fers e escamava pescadas, as quais acabara de eviscerar. Os peixes, presumidamente recolhidos do Sena naquela manhã, já fediam tanto que o seu fedor se sobrepunha ao dos cadáveres. Mas a mãe de Grenouille não percebia nem o cheiro dos peixes nem o dos cadáveres, pois o seu nariz era praticamente insensível a odores e, além disso, doía-lhe o corpo, e a dor tirava-lhe toda sensibilidade para sensações externas. Queria só uma coisa: que a dor cessasse, e deixar para trás o quanto antes o horror do parto. Era o seu quinto. Os quatro anteriores ela havia resolvido ali na peixaria, e os quatro haviam nascido mortos ou semimortos, pois a carne ensangüentada que dela saíra não se diferenciava muito das vísceras dos peixes que já estavam atiradas pelo chão, e também não vivia mais muito tempo, e à noite era tudo jogado junto em carretas e levado para o cemitério ou lá para baixo no rio. Assim deveria ocorrer também hoje.

... 


[trecho do primeiro capítulo] 


Patrick Suskind, O perfume, Rio de Janeiro: Record, 1985.

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*Um livro com uma história genial. Foi uma ótima sacada do autor, o alemão Patrick Suskind, ter tomado o cheiro como o principal elemento da narrativa. Isso prova que os sentidos, tão negligenciados pelos historiadores, é algo que deve ser explorado. Afinal de contas, ele compõe o cenário das nossas vivências tanto quanto as palavras, as cores, os sons, os gestos ou os sentimentos.

Grenouille, o personagem central do romance, é um típico personagem do ensaio “A vida dos homens infames” de Michel Foucault. Ele é da mesma categoria de Pierre Rivière ou Damiens. Loucos, assassinos que só entraram para a história em função de seus horrendos crimes.

Sugiro a leitura do Livro, ou para quem não tem tanto tempo assim, indico o filme (Perfume: a história de um assassinato) baseado no mesmo romance. Ambos são experiências incríveis. 
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