domingo, 4 de março de 2012

Assassinos de pés*



Por Eduardo Galeano



Há um par de séculos, Li Yu-chen inventou uma China ao contrário. Em seu romance Flores do espelho havia um país das mulheres, onde elas mandavam.

Na ficção, elas eram eles; e eles, elas. Os homens, condenados a satisfazer as mulheres, eram obrigados às mais diversas servidões. Entre outras humilhações, tinham de aceitar que seus pés fossem atrofiados.

Ninguém levou a sério essa possibilidade impossível. E os homens continuaram amassando os pés das mulheres até transformá-los em alguma coisa parecida a patas de cabra.

Durante mais de mil anos, até bem avançado o século XX, as normas de beleza proibiram que o pé feminino crescesse. Na China foi escrita, no século IX, a primeira versão da Gata Borralheira, onde ganhou forma literária a obsessão masculina pelo pé feminino diminuto; e ao mesmo tempo, anos mais, anos menos, se impôs o costume de vendar, desde a infância, os pés das filhas.

E não apenas por um ideal estético. Além de tudo, os pés atados atavam: eram um escudo da virtude. Impedindo que as mulheres se movessem livremente, evitavam que uma escapadela indecente qualquer pudesse pôr em perigo a honra da família.


in. Espelhos, 2009, pp.26-27.

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