sábado, 31 de março de 2012

A Cela*




A escuridão é ampla e envolvente.

O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos.

Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto como a fala direta do policial:

- Deixa as mãos dele algemadas.

Aos poucos, ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo - estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhava ao ponto de ensopar sua roupa - os braços para trás das costas, os pulsos algemados.

Aos poucos, ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra - uma terra vermelha e usada, com cheiro de mofo, cheiro de urina - sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros.

A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria.

- Deixa as mãos dele algemadas.

Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias - lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo.

Tentou se mexer, mas sentiu que o ombro direito, fincado no chão, estava dolorido - puxou o braço nas costas, e as algemas nos pulsos rasgaram a carne com um estremecimento: o silêncio foi interrompido com uma espécie de chiado - podia agora saber que sangrava, havia um novo odor no ar abafado - o sangue cheirava a barro, a ferro com ferrugem, cheirava a terra seca quando recebe as primeiras chuvas.

Era isso ou apenas imaginava um odor ou adivinhava a cor viva embebendo a terra cinza - e sangue e terra acabavam por formar uma abstração, um enigma.

Também não sabia se era noite, se era dia claro - uma cela sem grades, sem a pequena janela no alto, talvez sem porta. Mas por mais fechada que estivesse, uma porta sempre deixava passar alguma claridade, uma réstia de luz, um sopro vivificador. Nenhuma luz, nem uma leve brisa.

Da posição em que estava, mais uma vez tentava esquadrinhar o escuro, à procura de um ponto, de uma indicação que pudesse ser o ar ou a luz. Via o escuro de baixo para a frente e para cima, em ângulo ascendente.

Do teto também não escapava coisa alguma, mas o quarto - era mais um quarto do que uma cela comum - estava frio, embora abafado, um tanto úmido, cheirando a mofo. E se estava frio, úmido, cheirando a mofo, era porque recebia, em qualquer hora, chuva, vento ou algum raio de sol perdido.

Assim, concluiu: era noite, e como o frio apertava na espinha agora, concluiu: era madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, filtrado através do que quer que fosse, concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não me alimento.

E se decidiu a esperar pela manhã próxima - alguma claridade poderia atravessar aquela escuridão, pelo teto, pelos lados, onde deveria existir uma porta, fechada tão rente à parede como se fosse um prolongamento dela. E se decidiu a esperar que lhe trouxessem alguma coisa para comer, e se decidiu a esperar que acontecesse algo, mesmo um pequeno barulho ou um grito ou alguém caminhando lá fora ou dizendo algumas palavras.

"Lá fora".


Assis Brasil. in. Os que bebem como os cães. Ed. Renoir, 2009, pp. 13-14.

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