terça-feira, 6 de março de 2012

A banalidade do mal*



Por Josenias Silva


Corpos de prisioneiros do Campo de Buchenwald, leste da Alemanha.


A frase sob o portão parecia denotar alguma esperança - ARBEIT MACHT FREI (O trabalho liberta) - mas no fundo, levando-se em consideração o contexto, a frase não passava de um escárnio aos que tiveram a má sorte de cruzá-la ao transpor o portão. Auschwitz entrou para a história como o campo da vergonha. Desde o início do seu funcionamento (20/05/1940) até seu fechamento (27/01/1945) este campo constituiu-se numa verdadeira fábrica da morte, onde se estima que pelo menos 1.100.000 prisioneiros foram assassinados.

O principal campo de extermínio nazista também representou a epítome do estado burocrático, onde se pôde ver, pela primeira vez na história, uma burocracia do mal que outra finalidade não tinha que exterminar da maneira mais eficiente possível o maior número de seres humanos. Quando da libertação do campo - em fins de janeiro de 1945 - a realidade sobre a “solução final” do problema judeu veio à tona. As imagens que correram o mundo assombraram e constrangeram a maioria das consciências. As terríveis experiências infligidas ao corpo das vítimas ultrapassavam qualquer parâmetro de controle do comportamento humano até então conhecido. As seleções, as categorizações, o controle minucioso da vida e da morte, a tortura física e psicológica e a dor, se constituíram em experiências limite no corpo de milhões de prisioneiros.

A implementação de um plano de extermínio sistemático de judeus, homossexuais, ciganos, dissidentes políticos etc., foi algo que se operou de maneira gradual na Alemanha nazista, que desde a ascensão de Adolf Hitler ao poder (1933) já contava com uma política de exclusão de alguns grupos da vida alemã. Os judeus, embora não sendo os únicos, foram gradualmente vilipendiados de sua condição de cidadãos, foram demitidos dos seus empregos, boicotados em seus negócios, proibidos de participar da vida pública, foram expulsos de suas casas e – a partir de 1939 – obrigados a alojar-se em guetos sob condições insalubres e desumanas. Porém, nada ainda comparado ao que viria a acontecer nos campos de extermínio espalhados pelas regiões conquistadas do Leste europeu.

A literatura de testemunho dos que sobreviveram às atrocidades dos campos de concentração nos é farta de detalhes sobre este processo de dominação total pela violência e extermínio. Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, afirma que a fabricação em massa de cadáveres vivos foi precedida por três passos essenciais; sendo o primeiro passo a Morte Jurídica, conseguida através da exclusão de algumas categorias do amparo da lei, de sua criminalização e banimento da ordem do direito; o segundo passo constituiu-se na morte da Pessoa Moral, o que visou atingir diretamente a consciência do indivíduo que posto sob tais circunstancia (fome, violência, trabalho escravo etc.) foi obrigado muitas vezes a corromper-se e “compactuar” com seus algozes; e por fim, a Morte da Individualidade que foi sentida diretamente no corpo através da perda da espontaneidade e da capacidade de reação. De acordo com Arendt: “Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade, mesmo quando marcham para a morte.”

Assim, o sistema que conseguiu desumanizar suas vítimas e bestializar seus algozes de maneira a torná-los tão distintos - e ao mesmo tempo tão inumanos quanto animais subjugados - não pode estar muito distante das imagens que cotidianamente nos assombram no meio da rua e na televisão. Estas imagens, que parecem se repetir ao longo da história do homem, nos levam a refletir sobre a própria condição humana e sobre a banalidade do mal. A própria Hannah Arendt certa vez pronunciou uma frase de perturbar qualquer consciência sensível à condição humana. Segundo ela, “hoje sabemos que matar está longe de ser o pior que o homem pode infligir ao homem.” Portanto, fenômenos históricos como o Holocausto e o Nazismo devem servir para dimensionar o quanto o homem pode possuir de animalesco, de destrutivo e também o quanto deste mal pode estar banalizado no próprio cotidiano sob outras formas, sob outros totalitarismos.


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