domingo, 11 de março de 2012

A mão de tinta*



Por Braulio Tavares

Ezra Pound, por Wyndham Lewis


Existe hoje um frenesi de novidade, de originalidade, de ter que estar todo dia fazendo alguma coisa pela primeira vez. Não nego a importância da primeira vez. Tudo tem que nascer em algum ponto, tem que começar em algum ponto. Mas a segunda vez é tão importante quanto a primeira. Lembram daquele lugar comum da crítica, “o segundo disco (filme, romance) é mais difícil de fazer do que o primeiro”? Se é mais difícil (e muitas vezes é mesmo) é porque essa segunda vez pede alguma coisa que a primeira não pôde dar, e não poderia. 

Muitas coisas na cultura são como a pintura de uma casa, onde geralmente não basta dar uma mão de tinta, tem que dar depois a segunda, a terceira. À tinta não basta estar ali, precisa estar ali com mais peso, mais espessura, não só para não largar, como também para que sua luminosidade e sua cor sejam vistas com mais firmeza. (Não sabemos, mas quando vemos uma parede bem pintada vemos essas várias camadas sobrepostas de cor, umas através das outras, porque a luz as atravessa e se reflete várias vezes simultâneas por entre elas.) A segunda mão de tinta vem para salvar a primeira, a terceira vem para salvar a segunda. Como o tempo deixamos de perceber que são muitas, parecem uma só, e a intenção é esta.

De modo parecido, nas artes e nas culturas as coisas têm que ser ditas muitas vezes e por muitas vozes. Quanto mais pessoas aderem a uma nova forma de dizer, mais espessa e mais visível ela vai ficando, muito mais do que se tivesse se limitado à contribuição daquele criador solitário. O que seria a Bossa Nova se tivesse tido apenas João Gilberto, o Cinema Novo se tivesse tido apenas Glauber Rocha, o baião se tivesse tido apenas Luiz Gonzaga? Cada artista que se deixou contaminar pela obra destes e criou sua própria obra seguindo seus passos deu uma mão de tinta a mais no que estava sendo feito. 

É por isto que os chamados movimentos estéticos (Cubismo, Nouvelle Vague, Surrealismo, Folk-Rock, Expressionismo, etc.) se impõem com mais solidez na História. São compostos de um gesto inicial de um Inventor (no sentido que Ezra Pound usava: o que cria formas novas de fazer) e de gestos consecutivos de Mestres (o que não inventa, mas consegue fazer aquilo talvez até melhor do que o Inventor). Quando a crítica se queixa de que “todo mundo agora está indo na onda de Fulano” pode até exprimir um descontentamento legítimo diante de obras medianas e pouco inventivas, mas não deve fechar a porta a essas novas contribuições. Quem vai ajudar a fixar na memória do tempo a obra de Fulano são aqueles que tentaram suplantar Fulano num momento em que todos estavam mergulhados num impulso único pelo novo.

(9.3.12)




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