quarta-feira, 28 de março de 2012

As cidades imóveis e os paraísos fabricados*




Não se espante com o barulho. Ele vai aumentar. O dia está amanhecendo, mas o  movimento é grande. A estratégia de sair da crise oferecendo carros encantou a população. Houve uma corrida ao consumo de um bem ambicionado. Ficou mais fácil  ter o último modelo do ano do que manter o mais velho. Era, antes, um sacrifício arrumar grana para qualquer coisa. Os carros tocam suas dissonantes sinfonias. Acordam, provocam engarrafamentos longos, causam acidentes, completam a vaidade de muita gente. Uma máquina atuante e cheia de fascínio, quase uma moradia no mundo pós-moderno. Não se preocupe com o caos. Há promessas de construções de viadutos e planos fabulosos para alcançar a mobilidade que pede a Fifa.

As cidades estão se desfigurando. Elas não podem se transformar em fotografias permanentes do passado, porém a velocidade das mudanças transtorna. As praças viraram estacionamentos, não sobra lugar para a prática de nada. Os ruídos impedem uma boa conversa, os bancos servem para o descanso merecido dos habitantes das ruas e as árvores suspiram pedindo atenção. Será que caminhamos para o concreto armado e o asfalto sem sinais do verde e dos ventos refrescantes? Sinto-me encurralado.

Há quem reclame da violência da vida urbana. Protestos contínuos, brigas das torcidas de futebol, ônibus sem horário definido, drogas vendidas nas esquinas com desenvoltura, tudo isso não é lenda. Basta tentar circular e verificar os embalos de quem sonha com o desenvolvimento. Como querer calma com tensões cotidianas? O mercado imobiliário fabrica paraísos, inventa torres e se apropria dos terrenos com uma volúpia incomensurável. E o poder público tem alguma política de salvação ou compactua com as ambições das poderosas construtoras? Nada acontece sem negociações. Como elas se dão? Quem vence? Que interesses merecem destaques?

Se optar por ficar em casa, melhor fechar as janelas para evitar, também, a poeira das máquinas moventes que não dormem e se assanham com os afetos dos seus donos. Os deslocamentos da afetividade são visíveis. Os objetos recebem atenção especial. Eles garantem status e respeito na vizinhança. Por isso, correr atrás das liquidações das lojas é quase uma diversão. Faz-se a festa, até no estrangeiro. O modo brasileiro de enfrentar as crises capitalistas globalizou-se. Até os Estados Unidos adoram receber turistas com suas bolsas volumosas vindos de um país antes tão menosprezado. A necessidade se mobiliza e não protege as cerimônias. O valor de troca espalha-se com cinismos e justificativas fundamentadas.

Este é o mundo que vivemos. Uma selva disfarçada em vitrines e shoppings, talvez com mais armadilhas do que as existentes nas velhas aventuras de Tarzan. Um grande mercado que não cessa de usar seduções e inventar novidades. Não imagine consistências e nem tenha vergonha de cultivar desconfianças. A quantidade de assinaturas exigidas pela burocracia não comprova que a honestidade é soberana. Pergunte e se pergunte. O conforto quer silenciar a inquietude. Não esqueça que não há dominação absoluta. Os mais espertos temem falhas, configuram segredos, reúnem-se em salas vedadas ao máximo, mas o mundo gira.


Antonio Rezende. in. Astúcias de Ulisses

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