segunda-feira, 12 de março de 2012

O imperador dos contos de fadas*



Por Karl Erik Schøllhammer


Ilustração do livro A nova roupa do imperador, por John A. Rowe

O imperador adora roupas novas! Gosta de se exibir, ficar bonito e trocar de traje a toda hora. Displicente, ao ponto de esquecer suas responsabilidades políticas e militares, a vaidade faz dele uma presa fácil para dois gatunos forasteiros que chegam de longe vendendo ilusões. Uma roupa tão incrivelmente fina que só é visível para quem cumpre com competência suas obrigações de ofício! Ninguém enxerga nada e ninguém tem a coragem de admitir o fracasso. A história é bem conhecida, uma das imortais do grande narrador e escritor dinamarquês, Hans Christian Andersen. Publicada pela primeira vez em 1837, A nova roupa do Imperador expõe a sociedade do espetáculo que, o autor, declaradamente fascinado pela fotografia e pelas novas tecnologias visuais soube vislumbrar precocemente. No final da sátira, o olhar inocente da criança não se deixa enganar pela hipocrisia da população que assiste a procissão da alta sociedade em suas vestimentas de fantasia. Basta o grito “Ele está nu” e o riso acaba com a impostura.

O próprio Andersen foi um menino ingênuo do interior do país que chegou sozinho a Copenhague com apenas 14 anos em busca de fortuna e oportunidade entre as famílias de bem da sociedade dinamarquesa. Muitas vezes sentiu-se um intruso e até um impostor à procura do sucesso nas salões da alta burguesia. Ele nasceu numa casa pobre de um só quarto no dia 2 de abril de 1805. Filho de uma lavadeira e de um sapateiro, apesar da origem humilde o menino possuía um dom poético e grandes ambições. Cresceu formando uma memória prodigiosa e recontava as histórias que ouvia das velhas senhoras no asilo de pobres em Odense. Muito cedo começou a escrever peças de teatro que recitava em voz alta ao mesmo tempo em que dançava ou fazia mímica. Foram as lendas e relatos populares da sua região, da província de Fiônia, que lhe serviram de matéria prima para suas próprias histórias. Na sua autobiografia inconclusa – Levnedsbogen (O Livro da Minha Vida) – e só encontrado e editado em 1926, Andersen observou como as velhas crendices rurais e costumes tradicionais ainda eram vivas em Odense, uma pequena cidade de apenas 6.000 habitantes, e foram uma fonte inesgotável da sua fantasia criativa. Apesar da pobreza de seu lar, Andersen encontrava livros entre os pertences de seu pai e suas primeiras leituras da Bíblia, das 1001 Noites, das comédias do escritor dinamarquês Holberg e de Shakespeare foram essenciais para seu desenvolvimento.

Diferente de outros compiladores de contos de fadas no século 19, Andersen se apropriou livremente da tradição dos contadores, construiu uma ponte entre dois mundos: o velho mundo da oralidade coletiva popular e o mundo moderno do livro e do autor artista. Foi um escritor extremamente prolífico, sua obra inclui seis romances, 40 peças de teatro, 800 poemas, vários livros de viagem e autobiografias. Entretanto, conhecemos Andersen hoje porque introduziu na literatura algo que nem antes nem depois encontraríamos na literatura mundial – contos que formavam um gênero particular que ele chamou de “Eventyr”, ou literalmente “Aventura”. Traduzido para o português como “conto de fada”, em realidade tratava-se de um estilo novo com traços ao mesmo tempo tradicionais e modernos. É frequentemente ignorado que a obra de Andersen é muito maior e extensa de que sua produção de contos de fada. Na nova edição das obras completas, editadas em 2005 em 18 tomos, apenas três volumes são ocupados por contos.

O verdadeiro sucesso veio em 1835, com  o lançamento do primeiro livro de contos de fadas com quatro pequenas histórias destinadas (e dedicadas) à filha de um amigo, Ida Thielst: Contos de Fadas narrados para Crianças(Eventyr, fortalte for Børn). Os leitores gostaram e quiseram mais, e assim se iniciou a verdadeira reputação mundial de Andersen com os livros de “Eventyr”, que, a partir desse momento, eram editados sem o sufixo “narrados para crianças”. Foram 13 livros com um total de 168 contos de fadas, escritos tal como ele os havia contado para os filhos das famílias frequentadas em Copenhague.  

Hoje, pela atualidade que continuam evidenciando, reconhece-se que os contos não são exclusivos para crianças; pelo contrário, escritos com o domínio técnico do grande escritor, tendendo as vezes a aprofundar o que há de estranho, obscuro inquietante e fantástico nas histórias e personagens, colocavam-se em sintonia com o espírito romântico. Aqui, também se expressava um pressentimento dos fantasmas da modernidade, a idolatria da imagem e a cultura da aparência e do faz de conta que o autor capturava de modo agudo. O riso derruba a impostura mas também traz conciliação e a possibilidade de conviver com as fraquezas humanas.




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