Neil Gaiman, por Mizzy Chan
Grande parte das carreiras
literárias são resultado de uma experiência inesquecível de leitura que faz
alguém pensar: “Quero escrever assim também”. Ninguém começa a escrever sem ter
lido algo que o emocionou, que lhe deu uma nova maneira de pensar, de ver as
coisas. Jean-Paul Sartre, na infância, copiava à mão romances de aventuras,
trocando os nomes dos personagens e algumas peripécias, e os assinava com seu
próprio nome. August Derleth era um fã tão ardoroso das histórias de Sherlock
Holmes que inventou um detetive praticamente idêntico, mas para poder publicar
as histórias trocou o nome do personagem para Solar Pons. Outras vezes, a
motivação pode vir de um livro ruim. Diz-se que Fenimore Cooper trabalhava como
marinheiro e um dia, numa daquelas longas esperas a que os marinheiros são
submetidos, estava lendo um livro de aventuras. A certa altura jogou-o para um
lado dizendo: “Que coisa idiota, até eu seria capaz de escrever um livro melhor
do que este”. Os amigos riram dele, fizeram algumas apostas, e Cooper
escreveu O Último dos Moicanos.
Neil Gaiman, o autor de Sandman,
falou numa palestra sobre a impressão que lhe causou a leitura de O Senhor dos Anéis de Tolkien.
Totalmente arrebatado pela obra, diz ele, “cheguei à conclusão de que O Senhor dos Anéis era,
provavelmente, o melhor livro que poderia ser escrito, o que me colocou numa
espécie de sinuca. Eu queria ser um escritor quando crescesse. Não, não é
verdade: eu queria ser um escritor naquele momento exato. E eu queria escrever O Senhor dos Anéis. O problema é que ele
já tinha sido escrito”. Esse tipo de entusiasmo é resolvido, hoje, pela
existência do que chamamos “fan fiction”, histórias escritas pelos fãs
utilizando o universo e os personagens de uma obra que admiram. Prolongamentos,
extensões amadorísticas de uma obra profissional em sua origem. É uma atividade
ironizada por muita gente, mas que acho positiva, porque ajuda o jovem fã a
treinar sua mão dentro de um contexto dramatúrgico que ele já conhece bem e
onde sabe se movimentar.
Depois da fan fiction, entretanto, pode surgir a literatura profissional. Neil
Gaiman não reescreveu Lord of the
Rings, em compensação criou a série Sandman de quadrinhos e uma
porção de ótimos romances, como Neverwhere, American Gods, The Graveyard Book. Será que são tão bons e tão historicamente
importantes quanto obra de Tolkien? Não importa: são os livros de Gaiman, os
livros que ele tirou de sua própria imaginação e de sua memória afetiva, livros
modernos ambientados em Londres, nos EUA, em cidadezinhas imaginárias... Livros
que Tolkien não poderia ter escrito.
Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo