O caso
da rua El-Kichani parecia realmente muito sério. Uma rixa inesperada surgira
entre o jovem Fauzi, o poeta, e o oleiro Nagib. Os curiosos amontoavam-se junto
à casa do oleiro. Cruzavam-se as interrogações: - “Que foi? Como foi? Brigaram?”.
Um guarda, para evitar que o tumulto se agravasse, resolveu levar os dois
litigantes à presença do cádi, isto é, do juiz.
Esse
juiz, homem íntegro e bondoso, interrogou em primeiro lugar o oleiro, que
parecia o mais exaltado:
- Mas
afinal, meu amigo? De que se trata? Parece-me que foste agredido. É verdade?
- Sim,
senhor juiz - confirmou o oleiro desabridamente. – Fui agredido em minha
própria casa por esse poeta. Estava, como de costume, trabalhado em minha
oficina, preparando dois novos vasos coloridos que pretendia vender ao príncipe
Rauzi, quando ouvi um ruído surdo e a seguir um baque. Percebi logo de que se
tratava. O poeta Fauzi, que cruzava naquela ocasião a rua Bardauni, havia
atirado violentamente uma pedra e partira um dos vasos - um vaso já pronto, que
estava a secar junto à porta! Ora, senhor juiz, isso é um absurdo, um crime!
Estou no meu direito. Exijo uma indenização!
Voltou-se
o juiz para o poeta e interpelou-o serenamente:
- Que
tens a alegar, meu amigo? Como justificas o teu estranho proceder?
-
Senhor cádi - respondeu o jovem, o caso é muito simples e quero crer que a
razão milita a meu favor. Há três dias passados voltava eu da mesquita quando,
ao cruzar a rua Bardauni, em que mora o oleiro Nagib, percebi que ele declamava
um de meus poemas. Notei com tristeza que os versos estavam errados. O oleiro
mutilava, isto é, quebrava os meus versos. Aproximei-me dele e delicadamente
ensinei-lhe a forma certa, que ele repetiu sem grande dificuldade. No dia
seguinte, ao passar novamente pelo mesmo lugar, ouvi ainda o oleiro a repetir
os mesmos versos deturpados, isto é, com a forma erradíssima. Cheio de
paciência, tornei a ensinar-lhe a forma correta, e pedi-lhe que não tornasse a
mutilar os meus poemas. Hoje, finalmente, regressava eu do trabalho quando, ao
passar pela rua Bardauni, percebi que o oleiro declamava a minha linda poesia
estropiando as rimas e mutilando vergonhosamente os versos. Não me contive.
Apanhei de uma pedra e parti com ela um de seus vasos. Como vê, senhor juiz, o
meu procedimento não passou, afinal, da represália de um poeta, que se sente
ferido em sua sensibilidade artística por um indivíduo grosseiro.
Ao
ouvir as alegações do poeta, o juiz, dirigindo-se ao oleiro, declarou:
- Que
esse caso, Nagib, sirva de lição para o futuro! Procura respeitar as obras
alheias a fim de que os outros artistas respeitem as tuas obras. Se te julgavas
com o direito de quebrar o verso do poeta achou-se também o poeta com o direito
de quebrar o teu vaso. Lembra-te de que o poeta é o oleiro da frase, ao passo
que o bom oleiro é o poeta da cerâmica!
E a
sentença do ilustre cádi foi a seguinte:
-
Determino, pois, que o oleiro Nagib fabrique um novo vaso de linhas perfeitas e
cores harmoniosas, no qual o poeta Fauzi escreverá um de seus lindos versos.
Esse vaso será vendido em leilão e a importância da venda repartida igualmente
entre ambos.
A
notícia do caso espalhou-se pela cidade. O oleiro vendeu muitos vasos com
versos do poeta Fauzi e ambos tornaram-se prósperos e ricos. Mas continuaram
sempre bons amigos. O oleiro mostrava-se arrebatado ao ouvir os versos do
poeta. Encantava-se o poeta com os vasos admiráveis do oleiro.
Uassalã!
Malba Tahan. in. Os
melhores Contos. Ed. Best-Seller, 2006, pp. 93-96.