Em minhas – na falta de melhor nome –
aulas, a primeira coisa que aprendi foi não falar de literatura como um produto
que sai dos livros. Deixe-se isso para os professores de cursinhos, que pensam
ensinar enquanto põem o estudante a decorar nomes, datas, movimentos e obras
principais. Isso não é literatura, não serve à literatura, nem serve ao
conhecimento. Serve a um sistema estéril e formador de burros. Não se deve
jamais falar de literatura com esse nome cheio de pompa e reverência, A
Literatura. Fale-se da vida, dos problemas vividos por todos nós, velhos,
jovens, crianças, homens, mulheres, animais e gente.
Só se deve falar sobre aquilo que
apaixona a gente. Se o professor não descobriu a lírica de Camões, se não maturou
no peito Manuel Bandeira, se não é capaz de curtir Machado de Assis, se não se
emociona até as lágrimas com Lima Barreto, mantenha distância desses criadores.
O silêncio sobre eles fará um dano menor que a citação burocrática. Melhor para
o mestre seria cantar Roberto Carlos, equilibrar mesas na ponta do nariz,
imitar cornetas com um pente sobre a boca, fazer graça com arrotos cavalares.
Seria mais pedagógico.
Um autor deve ser apresentado a partir de um problema. Nada como o
conto Missa do
Galo, de Machado, para
todos os adolescentes. Eles entenderão até a última linha, vírgula e pontinho
das reticências. Eles vão respirar todos os movimentos implícitos e insinuados
da conversa da mulher solitária com um jovem. Eles são esse jovem. Eles sonham
com essa noite ideal em que os espere uma senhora sozinha. Elas compreendem
esse jovem e essa mulher. O conto tem todos os elementos de promessa de sexo e
conflito com o pecado antes de uma missa devota.
Os contos, quando lidos, devem ser muito bem lidos. Com pausas,
entonações, vozes, risos, pulos – o que o diabo achar necessário - como um ator
de rádio. Isso quer dizer que o professor comanda a narração, faz uma leitura
prévia, e pede para que ela continue em volta. Digo que começa com o professor
porque nas escolas se perdeu o necessário e fundamental hábito de leitura em
voz alta. Então é comum que um jovem estudante não saiba o valor de um ponto,
de uma exclamação, de uma vírgula, de uma pausa – o valor ponderado de uma
palavra em determinado contexto. Como poderão entender a maravilha de Manuel
Bandeira, na infância com o coração a bater, se não souberem que a moça nua lhe
fez o primeiro... ALUMBRAMENTO?
Mas entendam, a dramatização dos textos
nada tem de dramático. Quero dizer, nada é artifício, artificioso, operístico,
melodramático, falso. Ou se fala do que se conhece e do que se vive ou não se
fala. Ponto. Deve-se falar do amor, sempre. E nisso não vai nenhum romantismo.
Deve-se falar do amor, sempre, porque toda obra é a sua busca ou a sua negação,
a sua falta ou plenitude.
Apesar de até aqui ter falado de minha própria experiência, devo
terminar com duas coisas ainda mais pessoais. Primeira: não consigo até hoje
falar de Andersen com isenção e distância, quando me refiro ao conto A pequena vendedora de fósforos. Aquela trajetória da pequena menina
que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas geladas de uma
cidade, que vislumbra pelo vidro embaciado das janelas a ceia posta nas casas
burguesas e com profunda fome fica encantada... E me fere mais, e aí não
consigo ir adiante, quando Andersen realiza aquela imagem extraordinária:
enregelada, morta, a pequena vendedora sobe “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais
longe... longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem
fome, nem sede, nem dor, nem medo”.
Segunda. Certa vez, li para alunos com idades em torno de 11 anos
o meu conto Daniel. Claro, expurguei os termos mais chulos,
grosseiros. Quando eu li
“Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele
crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo
destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de
inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como
asas dum pássaro, movendo-se no espaço da fronte”,
na sala não se ouvia uma só riso, apenas respirações ofegantes.
Então eu ia para o quadro e desenhava as sobrancelhas, à Monteiro Lobato, para
eles verem. Depois, já ao fim, quando acrescentava que Daniel raspara aqui e
ali o seu estigma, e que “a cirurgia dera nascimento a dois pontos de interrogação
deitados, quase dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação”,voltava
ao quadro para desenhar os dois pequenos ganchos que ficaram no lugar das
sobrancelhas do personagem.
O melhor digo agora no fim. Vocês não vão acreditar no lirismo de
que é capaz a infância. Os meninos rebatizaram o conto. Em lugar de Daniel, eles me pediam sempre para ouvir, de
novo, O menino-passarinho.
Urariano
Mota. in. Direto da Redação