Houve um tempo em que os livros
eram copiados a mão nos mosteiros, em folhas de pergaminho. Obras importantes
eram passadas a limpo por escribas hábeis, com caligrafias meticulosas que,
vistas hoje, parecem ter sido impressas com tipos móveis, pela sua
regularidade, harmonia e clareza. Ser escriba medieval exigia, além da
caligrafia perfeita, boa cultura (para não cometer erros de grafia, e para
poder eventualmente corrigir os erros da cópia que estava servindo de modelo),
paciência e resistência física; porque em geral o escriba tinha que passar o
dia inteiro debruçado sobre uma mesa, molhando a pena no tinteiro e desenhando
letras após letras, hora após horas, dia após dia, ano após ano. Não era um
serviço para qualquer um; e pelo menos uma grande obra literária, O Nome da Rosa de Umberto Eco, fez
justiça a esses operários do saber, de um mundo que não existe mais.
O número da primavera da revista Lapham’s
Quarterly (http://bit.ly/GDbCwa) traz uma matéria sobre o lado emocional
desses artesãos anônimos: os comentários que eles deixavam anotados nas margens
ou no cólofon das obras que copiavam. Ninguém é de ferro, não é mesmo? Esses
monges de 800 anos atrás também não eram, e deixavam rabiscados, aqui e ali,
seus pequenos protestos. “Estou com muito frio”, anota um. “Esta é uma página
difícil dá muito trabalho para ser lida”, anota outro, lembrando-nos que estas
cópias impecáveis eram muitas vezes feitas a partir de manuscritos muito
velhos, danificados, com trechos arrancados ou ilegíveis. Alguns se queixam de
pequenos problemas técnicos: “O pergaminho é peludo”, “A tinta é rala”,
“Pergaminho novo, tinta rala, e não digo mais nada”. Alguns fazem uma
autocrítica: “Esta página não foi escrita muito devagar”.
Mais comovente são os desabafos mais longos, que expressam bem o sentimento
provocado por esse trabalho estafante: “Agora acabei tudo, pelo amor de Deus me
deem algo para beber”. “São Patrick de Armagh, libertai-me do ofício de
escrever”. “A escrita é um trabalho enfadonho. Ela enverga nossas costas, cansa
nossa visão, torce o nosso ventre e as nossas ilhargas”. “Eu estava gelado
enquanto escrevia, e o que não pude copiar aos raios do sol terminei à luz de
velas”. “Assim como a visão do porto é bem vinda ao marinheiro, a da última
linha o é para o escriba”. “Isto é tão triste! Oh, pequenino livro. Chegará um
dia em que alguém lerá esta página e dirá: A mão que a escreveu não existe
mais”. São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras
centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão
ou de dois joelhos humanos.
Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo