foto: sebastião salgado
A primeira provocação ele
agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem
assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não
como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a
alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou
porque não era disso.
Outra provocação foi perder a
metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada
daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a
vida.
Não pode ir a escola porque tinha
que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir
com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco.
Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco
pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu
um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos.
Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele
era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma
agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha.
Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em
reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No
próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta
vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se
mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava
disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar
provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária
não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.
Na décima milésima provocação,
reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!
Luis Fernando Veríssimo. in. Plenos
Pecados. Ed. Objetiva, 1999, pp. 31-34.