Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré
(1832 - 1883)
Um
homem solitário, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e
vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça
e amor.
A
vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O
melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou
nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo
que esqueceu o mundo real.
Vendeu até mesmo parte de suas terras, que não eram tantas, para comprar
volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.
O
valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é
preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da
realidade.
Alonso
Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer
reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória,
reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del
Toboso.
O
que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à
vidinha.
A figura imortal criada por Miguel de Cervantes
Saavedra (1547-1615) é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças,
desesperos, contradições e tragédias.
O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas
poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos
infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as
injustiças, e para salvar a si mesmo.
Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro
andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, meio
louco e meio sensato como o amo, montado em seu jumento.
A vida tal como é não basta. É necessário
inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os
dias que passam velozes e irrecuperáveis.
Viver com a urgência de quem se despede. Viver
como quem morre.
"Eu, Sancho, nasci para viver
morrendo."
Ninguém no mundo terá jamais autoridade para
censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisséia. Só os secos de
espírito o fariam.
Não será essa busca o anelo secreto que habita o
coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil
e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena
ter nascido?
Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível
em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.
"Cada qual é artífice de sua ventura",
ensinou-nos o Quixote.