Houve um tempo em que o pior insulto que um fotógrafo podia receber, ao mostrar uma imagem, era a de que ela estava “fora de foco”. Apresentar uma foto que não estivesse nítida era um palavrão visual que marcava, por muito tempo, a falta de habilidade em manejar um equipamento e a insensibilidade em mostrar um pedaço de papel contendo alguma coisa nebulosa. Uma habilidade que, se supunha, um bom profissional deveria administrar com a mesma maestria com que um bom espadachim maneja seu sabre ou um bom escritor sua pena.
A
tecnologia digital suprimiu a possibilidade de perder a foto decisiva por falta
de prática na hora de focar, com a objetiva autofoco e uma avalanche de
recursos – sejam eles embutidos nas câmeras, sejam na pós-produção – que
permitem a qualquer um fotografar. E quando digo “qualquer um” é isso mesmo que
quero dizer; qualquer pessoa pode produzir uma imagem, não é preciso nem
prática nem habilidade para apertar o botão de qualquer aparelho e desse ato
surgir uma imagem. Se ela é uma boa foto ou não, é outra historia. Mas esse não
é o ponto. O ponto é que, hoje, a pior suspeita que se pode levantar sobre um
fotógrafo é a de que ele manipulou sua imagem. O palavrão, hoje, se chama
photoshop. E o fotógrafo que se atrever a deixar rastros de seu uso, no seu
trabalho, passa a ser visto como amador.
Devo
lembrar, porém, que a manipulação de imagens não é novidade. Mesmo nos desenhos
das paredes da caverna de Lascaux os animais têm uma das quatro patas levantada
para dar a percepção de que estavam se movimentando pelas pradarias
perigordianas.
A supressão da memória
O
pintor francês Ingres imaginou a tela de sua autoria “Napoleon I on his
Imperial Trone” (1806) como uma maneira de enaltecer o imperador e, na
sequência, conseguir apoio oficial para futuros trabalhos. Infelizmente, Ingres
caprichou tanto no retrato que Napoleão, mesmo com seu ego inflado e sonhos de
conquistador a se perder no horizonte, rejeitou o trabalho, achando que o
pintor tinha passado da conta. Um caso de puxa-saquismo artístico que custou
caro a Ingres; nunca recebeu uma encomenda oficial.
Outro pintor, o inglês John Singer Sargent, caiu em
desgraça entre a alta sociedade da capital francesa depois de apresentar o
retrato de Amelie Gautrau, o famoso Madame X, no Salão de Paris em 1884. O
escândalo foi provocado pelo fato de uma das alças do vestido de madame Gautrau
aparecer, na tela, displicentemente caída. O escândalo “deixou o artista
pasmado e a modelo banhada em lágrimas”. E o que era para ser o ápice de uma
ascensão social anunciada – a senhora Gautrau era conhecida pela excelência de
suas roupas e sua beleza, e imaginava que aquela tela a tornaria o talk
of the town parisiense
– se transformou, no século 19, em um exemplo de crash
and burn digno do
mercado de celebridades de hoje. Sargent refez o quadro e, na tela que pode ser
contemplada no Museu de Arte Metropoliano de Nova York, duas alças –
finíssimas, é verdade – cobrem os ombros de madame Gautrau.
Cair
em desgraça era o que levava os dirigentes do Partido Comunista russo, ou do
chinês, a desaparecer, como por milagre, das fotos oficiais depois de certo
tempo. Na medida em que os camaradas iam entrando em declínio político, as
caras deles sumiam das fotos. O fenômeno de supressão da memória era feito
pelos retocadores que, com um pincel e um estilete, seguiam os caprichos
históricos de Stalin ou Mao Tse-tung.
A ferramenta não faz o mecânico
A tecnologia digital, além de facilitar o ato de
fotografar, tem de compensar de alguma maneira a quantidade de imagens erradas
que são jogadas para o ar, por segundo, no mundo. Para isso existem mais de 80
ferramentas e plug ins dentro do photoshop. Com elas você
pode retocar uma imagem, substituindo uma área por outra, ou copiar um pedaço
da superfície retratada por outra. Ou, ainda, pode diminuir, e aumentar, partes
do corpo, ou alterar o formato das roupas vestidas. Não consigo imaginar aonde
Méliès poderia ter chegado se tivesse tido acesso na sua época a alguma coisa
parecida. Mas posso contemplar, um dia sim, outro também, o que são capazes de
fazer mentes sem talento no acabamento das imagens atuais.
A
ideia por trás do photoshop não é a otimização da mentira, mas melhorar a luz e
atenuar eventuais condições adversas em que a foto tiver sido feita. No aplicativo
está reunido todo o conhecimento necessário para que as pessoas, os lugares, os
objetos saiam bem na foto, o mesmo conhecimento que por muitos anos foi
dominado por poucos e agora está ao alcance de qualquer um. Não podemos
esquecer que a Playboy foi lançada em 1953 e as mulheres dentro das páginas
dela sempre pareceram, apesar de quererem ser as garotas da vizinhança,
perfeitas.
Mas,
assim como o hábito não faz o monge, a ferramenta não faz o mecânico. Uma boa
imagem não é conseguida a partir de instrumentos de aperfeiçoamento, e sim em
função de um bom equipamento e de uma boa luz. O uso do programa que corrige os
erros de português do Word, que estou usando neste momento, não implica que o
texto será melhor ou pior, apenas mais legível.
O enganador em seu lugar
As
aparências podem enganar, mas não durante muito tempo. Um sorriso – verdadeiro
photoshop da simpatia estampada no rosto – só convence se as intenções são
verdadeiras. O mesmo se pode dizer de uma foto. E os exageros das imagens
maltratadas afundam como a propaganda enganosa que tentam empurrar através da
retina dos consumidores.
A
manipulação de imagens, não se enganem os puristas, não é nenhuma novidade. A
novidade é o espanto que essa manipulação possa provocar nas pessoas e a
suposta vitimização do consumidor que, para algumas mentes legislativas, parece
ser incapaz de analisar sozinho as informações que recebe. Como se tudo tivesse
de ser mastigado, tirando a possibilidade de discernir o certo do errado e de
se supor a ausência de uma inteligência própria no indivíduo, que funcionaria
melhor quando substituída por uma coletiva, em que uns poucos dizem, e decidem,
o que é bom para todos. Daí para a infantilização das pessoas, e que elas sejam
tratadas como crianças, é um passo.
A
propaganda através de imagens poderá ser enganosa, com ou sem photoshop, porque
a honestidade é um aplicativo mental que depende de cada um. Ninguém altera a
imagem do frasco do produto, que vai ser encontrado fisicamente no supermercado
ou no balcão de vendas; o que se extrapola é o tamanho do sonho, o tamanho do
intangível.
Quem
quiser burlar o próximo o fará como sempre foi feito, com lei ou sem lei. Cabe
uma outra lei, a do mercado, colocar o enganador em seu lugar.